TERRA OPACA
NICOLE TSANGARIS
SUSANA SOARES PINTO
Carlos, um terapeuta do deserto do Atacama, dizia que os seus antepassados, ao observarem o céu e projectarem nele símbolos e constelações, não olhavam apenas para a luz, mas também para os espaços vazios, para a escuridão. Assim, nasciam dois grupos de constelações, as feitas com a luz das estrelas e as feitas a partir da escuridão. Este testemunho foi ouvido durante uma viagem ao deserto do Atacama no início do confinamento devido à pandemia de covid-19. O vídeo que aqui apresentamos, Terra Opaca, foi realizado durante este contexto e a uma distância de 300 km entre nós as duas. Num processo ao qual chamámos de ping-pong, as ideias e imagens iam e esperavam pela volta. Sempre numa tentativa de compreender sentidos na escuridão.
Terra Opaca não foi construído com imagens em movimento, mas antes estáticas, imagens em suspensão. São fotografias da prisão da Stasi, na Alemanha de Leste, e de lugares de actividade extractivista. Será que a escolha destas imagens foi um reflexo da nossa situação, a de confinamento?
A condição de fechamento, ou de uma prisão, cerca os nossos sentidos, o que não corresponde unicamente ao esmorecimento dos mesmos, mas à criação desafiante de nos superarmos para sobreviver. Nestas condições a imaginação e a memória expandem-se porque o corpo encontra-se dentro de quatro paredes. Essas paredes da prisão ou da casa escurecem os sentidos, mas é no escuro que a germinação acontece, e da qual, na origem, todos dependemos. A semente foi-se transformando ao longo da história e a de hoje, já não germina no escuro. A semente de hoje multiplica-se sem germinação e à luz dos espelhos da ganância. As sementes de hoje, além de serem geneticamente transformadas, fazem parte da extinção massiva de espécies no planeta. Um dos reversos deste fenómeno está na criação de bancos de sementes que pretendem coleccionar a totalidade existente no planeta, para um possível recomeço. O pensamento distópico assombra-nos, tanto pelo confronto com as realidades dos nossos tempos – dos que sofrem com as consequências da crise climática – como pelas tentativas Prometeicas das engenharias científicas, quase divinas, que ditam as tendências e que nos iludem.
Já chegámos ao consumo das terras raras.
Neste ecossistema artificial, em que a Terra e as terras raras deixam de ser opacas, produz-se um mundo esvaziado também de mistério e de diversidade. Um mundo onde não há espaço para a escuridão, pois ela é incompatível com o crescimento, com o progresso e é sinónimo de um tempo anterior ao Iluminismo, o tempo das trevas. Quase tudo é reduzido à condição de recurso e matéria prima a ser explorada até à exaustão. A perseguição do crescimento e da expansão infinita canibaliza a sustentabilidade do planeta e conduz-nos à auto-destruição. Em contraponto a esta vida, a da obsessão pelo dinheiro, pelo trabalho e pela produtividade, encontramos uma possível escapatória na introspecção, na contemplação e na reclusão. Criámos um diálogo a duas vozes: um consciente e exterior, e o outro hipnagógico e interior. Esta viagem ao interior através de camadas e imagens obscuras fez-nos questionar se o que se encontra “lá fora” não passa de uma ilusão.
Prisioneiros desta fome insaciável de exploração, criámos uma sociedade autofágica, como no mito de Erísicton, e alimentamo-nos com a nossa própria carne. Também as células, no processo de degradação e reciclagem, realizam a autofagia. A célula digere partes de si mesma quando carece de reservas, para garantir a sua sobrevi-
vência. Mais uma vez escrevemos a palavra sobrevivência. Podemos fugir da autofagia? Se no exterior a vida não faz sentido, podemos usar os sentidos na escuridão e iniciar um processo de simbiose com outros seres para criarmos novas constelações, em alternativa à autofagia?!
No hemisfério Sul, o céu é olhado de uma forma cósmica e não apenas científica. Esse olhar ancestral é passado à geração seguinte pela pessoa escolhida da geração anterior. E assim vão-se mantendo vivas as constelações da escuridão. Para além destas constelações dos espaços negros, no horizonte do deserto, vislumbra-se uma luz artificial. Como a luz de uma cidade avistada ao longe. Dagoberto, um amigo do deserto, dizia que era ali que estavam a fazer a exploração mineira de lítio 24h/7d. A primeira publicação com a catalogação das acções necessárias para a mineração publicada em 1556 – De Re Metallica de Georgius Agricola – continha ilustrações em que os gestos ainda não apareciam separados da unidade orgânica do corpo. Como salienta Allan Sekula, logo a seguir, ainda em pleno século XVI, a magia da mineração transformou-se numa actividade racional que busca apenas o lucro.
A transformação da humanidade em máquina iniciou-se nos campos da mineração, diz-nos Anselm Jappe, fazendo referência ao trabalho artístico de Mabe Bethônico em cadernos minerarios (2012), onde a artista retira das ilustrações originais de Georgius Agricola os movimentos e membros que usam as ferramentas. O corpo como unidade deixa de existir e passa a ser apenas ferramenta, tanto mais útil quanto obediente, e vice-versa, como dizia Michel Foucault. E aquele que é útil é lucrativo. As formas de dominação exercidas pelo poder estão em constante evolução no sentido de fabricar ferramentas produtivas e eficazes que lhes garantam esse mesmo poder e riqueza. Parece que o ser máquina para além de habitar as histórias de ficção científica, já habita o solo do planeta Terra. O extractivismo fez germinar uma semente que deu origem a uma espécie nova, o capitaloceno.
Na ficção científica, a Terra inabitável leva os humanos à colonização de outros planetas. No livro Será que os Androides Sonham com Ovelhas Eléctricas, de Philip K. Dick, essa possibilidade de fuga só existe para as classes sociais com mais poder. Os que se encontram no escalão inferior da sociedade estão presos numa terra devastada por uma guerra nuclear onde a vida não prospera a não ser com ajuda de tecnologia avançada. Os animais reais passaram a ser uma raridade e símbolo de estatuto social para aqueles que os têm. As pessoas mais pobres apenas conseguem obter versões robóticas altamente realísticas desses animais. Esta simulação de vida que o livro representa é a consequência máxima da lógica competitiva e extractivista e do crescimento a qualquer custo. O mundo esgotado e sem vida obriga à colonização de planetas mais prósperos e à criação de androides que simulam a vida humana para conforto emocional. A condição de inabitabilidade do mundo reduz o planeta Terra a uma prisão. Os mais pobres ficam presos numa terra dizimada, onde o ferro ocupa o lugar antes reservado à vida orgânica. A Terra como local do exílio humano subverte o sentido da própria vida: somos estrangeiros no nosso mundo, onde nascemos para automaticamente sermos banidos do mundo natural e vivermos na ficção do mundo social. Baudrillard disse que as prisões existem para esconder que todo o social é cárcere. De certo modo, na distopia de Dick essa simulação desaparece e torna-se explícita. O mundo tornou-se uma prisão no sentido literal do termo.
O mundo em que vivemos hoje, onde a exploração espacial a Marte é acompanhada da ânsia de encontrar alternativas viáveis à Terra, poderia ser um prólogo para a história de Dick. A pergunta que fazemos é: como resistir e cuidar do nosso planeta? Encontramos nos povos indígenas um espírito de resistência à dominação dos interesses económicos. Um dos princípios que definem o seu modo de estar é o Ayni, que significa reciprocidade. Eles sabem que tudo está interligado, que cada um é parte de um todo comum – comunidade e natureza – e que a entre-ajuda é o princípio essencial à vida. Valorizam o colectivo sobre o indivíduo, a cooperação ao invés da competitividade. Contra as relações de dominação e exploração (sociais, políticas, económicas ou culturais), mantém uma relação com a natureza que não é de posse nem superioridade. Modos de vida que foram desaparecendo devido à vontade racional de crescer, acumular bens, possuir terras, ouro, petróleo e matérias-primas. Extintos por um processo de colonização dos povos e da natureza.
É URGENTE
A INCLUSÃO DO PODEROSO TRABALHO DE DESCOLONIZAÇÃO
QUER DIZER
REPARAR PROFUNDAMENTE E ANIMAR OS ECOSSISTEMAS
E AS COMUNIDADES QUE SUSTENTAM SISTEMAS NATURAIS
PARA TE INICIARES E TE ENVOLVERES NA REPARAÇÃO DA TERRA
RECONHECE
RESPEITO E HONRA AOS ADMINISTRADORES ORIGINAIS DESSAS TERRAS
AOS SEUS DIREITOS INDÍGENAS
PRÁTICAS DE VIDA
CONHECIMENTO
RESISTÊNCIA
E SOBERANIA
PEDE PERMISSÃO PARA FAZERES O TRABALHO NA TERRA
PROCURA OS SEUS ANCESTRAIS
DE ONDE VIERAM
O MODO COMO ACARINHARAM E HONRARAM AS TERRAS
E QUANDO É QUE ESSA RELAÇÃO SE PERDEU E SE DESTRUIU
TENTA VER A TERRA À TUA VOLTA COM NOVOS OLHOS
PARA LÁ DOS MEGAPROJETOS
BARRAGENS
CAMPOS DE MONOCULTURA
E SELVAS URBANAS
RESPONSABILIZA-TE POR TE EDUCARES
TOMA A RESPONSABILIDADE E A INICIATIVA
DE TE INFORMARES SOBRE HISTÓRIAS ENTERRADAS E ESCONDIDAS
DAS TERRAS A QUE CHAMAS LAR
E DOS POVOS COM QUEM AS PARTILHAS
DESAFIA A CULTURA CAPITALISTA
QUE VÊ A TERRA E OS SERES VIVOS
COMO ALGO QUE DEVE SER POSSUÍDO
MERCANTILIZADO
E DESTRUÍDO PARA OBTER LUCRO
E NÃO O REPLIQUES NO TRABALHO QUE ESTÁS A FAZER
QUE A TERRA SE MANTENHA OPACA!
CÂMARA
LA LOUPE ET SES ÉCRITS
Fernanda Toniazzi
SEM MOVIMENTOS VOLUNTÁRIOS
Pedro Magalhães
BULDONHE
Miguel Teodoro
RUÍNAS E REMINISCÊNCIA
Bernardo Sousa Santos
TRÊS ATELIERS DE ARTISTAS CONTEMPORÂNEAS
Maria João Ferreira
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
Avenida Rodrigues de Freitas, 265
4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020