SOBRE AS RUÍNAS DE UMA UTOPIA
JULIANO MORAES
O anseio pela terra muitas vezes é um traço distintivo daqueles que se deslocam territorialmente, seja por escolha pessoal ou necessidade. As migrações e os nomadismos reconfiguram territórios, constituem novas identidades, novas subjectividades. Por contraste, os espíritos nostálgicos dos românticos alemães aspiravam à constituição de uma identidade germânica calcada numa suposta origem grega, a fim de construir uma terra grandiosa no presente, a Alemanha. Foram além, conceberam um território mítico no presente que serviu como base para uma nova subjectividade de tal magnitude que permitiu a liberação de pulsões criativas transformadoras do seu próprio tempo. Formularam um modelo de emancipação estética e social que, com todos os paradoxos, dissensos e rupturas intrínsecos ao projecto moderno, faz sentir os seus efeitos ainda nos dias actuais.
O anseio pela terra fez-me querer, em parte por influência de Guimarães Rosa, noutra por Aquilino Ribeiro, «dobrar sobre a enxada, revolver o solo (nortenho) para as novidades» que se abriam para mim no meu deslocamento voluntário. Como uma tentativa de construir, pela minha movência, uma geografia sentimental dessa velha nova terra que se abria para mim, Portugal. Mas sempre carregando comigo a antiga, o Brasil. Ou, ao cabo de tudo, apenas traçar uma linha riscada na paisagem, pois mover-se no espaço, entre o território imaginado e o real é tensionar os limites temporais dessa ilusão que chamamos de presente. E que nem sempre está onde parece ser mais evidente.
Este ensaio é o registo da minha experiência na vila modernista de Picote, através das imagens capturadas em duas viagens distintas, com um intervalo de um ano entre elas. As distâncias temporais entre as fotos reflectem não apenas variações na tonalidade, mas também na perspectiva do assunto retratado, trazendo diferentes facetas para o mesmo tema.
Para esse intuito, eu e meu amigo, o arquitecto Pedro Centeno, planeamos sair da cidade do Porto, percorrer o rio Douro, passando pelas barragens de Picote, Miranda do Douro e Bemposta, e retornar por Trás-os-Montes, perfazendo assim quase um circuito completo pela região norte.
Na primeira viagem, partimos do Porto no início de janeiro de 2021 a tempo de pegar o almoço em Vila Flor. Comemos um belo joelho de porco fumado, acompanhado de uma jarra de vinho regional servidos numa tradicional tasca construída em madeira e pedra. À porta do estabelecimento, sob a luz pálida do inverno, saltava à vista a figura de três velhotes, lavradores recurvos. Cada qual com seu cigarro à boca, curados de sol e marcados pelos anos de lavras do chão, como nas fotografias rurais de Artur Pastor. Tudo indicava, com certa obviedade, que estávamos prestes a adentrar por território mítico de Trás-os-Montes. Começaria assim a minha busca pelo «caleidoscópio rústico» que comporia o suposto sertão português. Adentrar nesse espaço era como se eu pudesse perfurar o chão até encontrar as águas do tempo passado correndo sob os meus pés.
Todavia, a obviedade sinalizava para algo que ainda não podia saber o quê. Estaria eu incorrendo em algum erro? Deveria eu impedir os efeitos do imaginário? A imagem, para Jacques Lacan, grosso modo, é o que o nosso imaginário vê. O que vemos é a projeção do eu ideal, «a suposição esperada do eu quando ele se reconhece na imagem». Eu via era uma paisagem perfeita, cheia de arcaísmos, adocicada, pintada pelo meu desejo em busca do gozo escópico. Elas pareciam transportar-me para um tempo primevo, originário do sentido. O retorno, não a um tempo vivido, mas a um que gostaria de ter vivido, e que guardava em mim como se assim o tivesse sido. Mas não era o caso de retornar à minha Grécia, ao meu Goiás, porque não é possível retornar a uma origem, pois o que há são origens. Didi-Huberman acredita que o tempo passado, a fonte do historiador, são como raízes aéreas que brotam do solo em nossa direcção, «que surgem sob meus passos, para modificar radicalmente o meu caminho (para o futuro).» Assim, as confluências entre passado e presente são sempre lacunares e múltiplas.
Retomo a jornada. Até então, tudo transcorria de acordo com as minhas expectativas, até que Pedro, de súbito, toma um desvio numa via secundária. Anuncia que a nossa próxima paragem seria na barragem de Picote. O entardecer começava a se manifestar enquanto subíamos um morro íngreme por meio de uma estrada estreita. Ao alcançarmos o topo, a estrada curva-se à esquerda desvendando a face oculta do monte. Mas o que os meus olhos puderam contemplar ultrapassou em muito as minhas expectativas: diante de mim, repousava uma pequena aldeia modernista, engastada no topo do morro e guardada por tantos outros em todos os lados. Tinha chegado ao moderno escondido, estava pisando as ruínas de uma utopia.
A aldeia modernista da Barragem de Picote é um conjunto arquitectónico construído entre as décadas de 40 e 50 para abrigar os funcionários. Projectada por três jovens arquitectos portugueses – Nunes de Almeida, Rogério Ramos e João Archer de Carvalho, a aldeia é composta por dez edifícios residenciais, uma igreja, uma escola, um centro comunitário. A arquitectura dos edifícios se insere no contexto da arquitetura moderna internacional, com forte influência le corbusiana. Caracterizadas por volumes simples, linhas rectas e a mistura de materiais como o betão, o vidro e a madeira. Bem harmonizadas na natureza, as casas mais nobres da aldeia possuem grandes janelas que permitem uma vista panorâmica das escarpas do rio Douro.
Actualmente, abriga poucas dúzias de habitantes e apresenta uma peculiar «pós-modernidade rural». Há uma atmosfera misteriosa que sugere ao visitante o caminhar por um lugar desolado sem perder o ar grandioso do passado. O espírito utópico do modernismo ainda está presente ali como um futuro não concretizado. Uma «utopia do futuro que começa a arruinar-se sem ter concluído o passado», como escreveu Alexandre Alves da Costa.
O projecto de Picote possui em comum com o modernismo brasileiro a vontade de progresso e a superação do atraso. Contudo, o pensamento revolucionário inerente ao discurso previsto, tanto no projecto constructivo russo como no brasileiro, parece estar ausente aqui. Nestes dois últimos países, o projecto constructivo era uma forma utópica de pensar a produção de modelos (atualizados pelo marxismo) de emancipação social via experiência estética, ainda que com diferenças fundamentais na forma como poderia ser alcançado. Na experiência de Brasília, por exemplo, Oscar Niemeyer buscou tirar proveito da topografia do Planalto Central para criar uma cidade baseada no sistema de pilotis que horizontalizavam a convivência urbana. Em contraste a essa abordagem, em Picote, o uso da topografia pelo projecto urbanístico evidencia uma sociedade conservadora e hierarquizada, com casas dos altos quadros da usina no topo da montanha e a dos operários na base, sendo possível observar uma clara estratificação social. É uma utopia modernista da forma sem o conteúdo ideológico mais característico do período. Num, apontava para uma utopia socialista, e mnoutro, para o progresso controlado, conservando a estrutura verticalizada das classes sociais do período salazarista.
Os projectos constructivos brasileiro, russo ou português são projetos inconclusivos, implantados parcialmente, mas que legaram para nós o testemunho da capacidade modernista, seja como for, de imaginar projectos de nação e criar espaços de transformação social. Para Ernest Bloch, a utopia desempenha um papel fundamental na transformação da história, pois a sua construção não é feita apenas da matéria da fantasia, mas também baseada na realidade vivida.
As possibilidades utópicas emergem diante da perplexidade que sentimos diante do mundo. Eis aí a condição de imaginar novas formas. Associadas aos estudos de modelos do passado que nos oferecem esperança de rumar a um futuro diferente dos protocolos oferecidos pelo presente. Quanto a mim, eu continuo sendo impulsionado pelo meu desejo da terra, buscando minhas origens, ao mesmo tempo em que minha imaginação é activada por viagens às terras estrangeiras, num movimento sempre dialétcico.
CÂMARA
LA LOUPE ET SES ÉCRITS
Fernanda Toniazzi
SEM MOVIMENTOS VOLUNTÁRIOS
Pedro Magalhães
BULDONHE
Miguel Teodoro
RUÍNAS E REMINISCÊNCIA
Bernardo Sousa Santos
TRÊS ATELIERS DE ARTISTAS CONTEMPORÂNEAS
Maria João Ferreira
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
Avenida Rodrigues de Freitas, 265
4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020