CAMUFLAGEM, A IMAGEM DO DESAPARECIMENTO
LUÍS ESPINHEIRA
Até ser cunhada pelos franceses em 1917, durante a Primeira Grande Guerra, a palavra camuflagem não existia. Ela deriva do verbo camoufler: vestir, cobrir, disfarçar, mascarar. Anteriormente ao uso no contexto militar, tinha conotações teatrais e eram usados sobretudo os termos “coloração de ocultação” ou “coloração protectiva”. Camuflagem é uma palavra mais eficiente, “coloração protectiva” pode significar não a ocultação, mas a exibição.
Embrenhado na descoberta circunstancial da semelhança entre a casca do tronco dos plátanos e os camuflados militares, fui capturando algumas imagens dando conta da presença destas árvores na paisagem urbana. Variando de tonalidades, conforme os locais e as estações do ano, os padrões presentes no tronco, parecem resultar de um design têxtil que organiza fibras e paleta. A casca desta árvore desenvolve-se num mosaico variado de tonalidades de verdes, acastanhados, cinzas, esbranquiçados e amarelo seco, próximo ao amarelo de Nápoles. A casca, com várias rugosidades, apresenta uma microtextura linear visível a olho nu, acompanha a verticalidade e ao desprender-se em placas, deixa no tronco as várias camadas que tornam visível diferentes níveis de profundidade. No mesmo tronco, convivem peles de várias idades, umas na iminência de se desprender, outras acabadas de emergir. Na sua irregularidade de formas e tamanhos, surge um padrão orgânico, sem módulo nem repetição.
Simultaneamente ao exercício recorrente de pensar as imagens, tornou-se clara também a necessidade de, com elas, pensar a invisibilidade. Ou melhor, que as imagens, numa contradição aparente, através da sua qualidade visual, operam sobre coisas invisíveis. As imagens não só constituem, na sua semelhança, a possibilidade de convocar algo que não está, como são capazes, na sua materialidade representativa, de nos conduzir pelos caminhos da subjectividade humana, que não cabem na linguagem, nem na ordem do visível.
Numa imagem muito própria, a camuflagem surge como um novo parâmetro na modalidade do invisível. Especialmente no sentido militar, é usada para ocultar, dissimular ou disfarçar, com o objectivo de minimizar a possibilidade de identificação e a detecção de pessoas, locais ou equipamentos. Se num primeiro momento, as imagens dos plátanos deram início a um processo de investigação pela sua plasticidade e semelhança aos padrões militares, depressa se transformaram numa forma de pensar visualmente a invisibilidade. A camuflagem não é mais do que um processo de desaparecimento operado por uma imagem. Humanamente, na impossibilidade do desaparecimento absoluto, resta na imagem a possibilidade de nos tornarmos outro e, só assim, é possível desaparecer. Na verdade, é um problema de mediação entre a percepção e as expectativas.
A camuflagem responde à necessidade de tornar algo invisível num determinado meio. Da mesma forma que, para pensar as imagens, é fundamental pensar os seus processos de invisibilidade, o observador é uma condição crucial, tanto na medida do visível como do invisível. Se a imagem tem existência, na possibilidade da presença de um observador, também só na presença de um observador, uma coisa tem a possibilidade de se tornar invisível. A imagem, no seu sentido antropológico ancestral, parte de uma semelhança, através da qual adquire a sua forma de existência e, eventualmente, uma autonomia paralela à sua origem. Na camuflagem a semelhança é também o processo produtivo, mas para anular a existência. Aqui, ao contrário da imagem original, não se trata de uma semelhança à origem, mas uma semelhança ao meio. Entre a imagem e a camuflagem, surge a semelhança que através da sua operatividade comum, trabalha significados inversos para cada uma delas. Na primeira, confere-lhe existência tornando-a visível, na segunda, torna algo invisível, trabalhando, através da imagem, o desaparecimento.
Na cultura digital dos nossos dias tornou-se banal e recorrente a necessidade de nos tornarmos invisíveis. No espaço digital temos por excelência um espaço humanamente construído, onde a existência se dinamiza pela imagem em toda a sua reciprocidade. Feito de ilusão e distância, o espaço digital constitui-se, hoje, um espaço com uma dimensão visual onde se opera o controlo da visibilidade e da invisibilidade.
No contexto português, Sérgio Veludo Coelho, relativamente aos uniformes militares, entre os finais do século XVII e durante todo o século XVIII, diz-nos que continua a «subsistir um xadrez assaz colorido nos campos de batalha daqueles tempos, mas denotando uma uniformidade organizada e obrigatoriamente visível através dos densos lençóis do fumo da pólvora negra.». Esta breve incursão pela realidade anterior ao século XX não deixa de demonstrar como o meio define a visibilidade e a invisibilidade na construção da realidade. Na actualidade, reconhecemos que os camuflados militares foram durante muito tempo, nas suas manchas em tons de verde e acastanhados semelhantes aos padrões dos plátanos, porque a natureza era o meio militar. O combate, mesmo quando se fazia por via aérea, estava localizado no mundo terrestre. Por isso, os camuflados, no seu objectivo de fazerem desaparecer coisas na natureza, assemelhavam-se à própria natureza.
Hoje os combates têm outros meios e as batalhas já não se fazem no terreno mas sim nos centros de telecomunicações, à distância, por sensores, câmaras, drones e tecnologia furtiva: «a guerra de imagens está a substituir a guerra de objetos (projécteis e mísseis).» Virilio fala-nos, neste contexto, da «estética do desaparecimento». O espaço virtual e toda a imagiologia militar substitui a natureza como campo de acção. Esta alteração do meio, provoca, obrigatoriamente, novas exigências nas estratégias de camuflagem. Se no passado, os camuflados pretendiam enganar a vista humana no contexto da natureza, agora, os camuflados pretendem enganar as câmaras. Os camuflados passaram a ter uma componente gráfica pixelizada porque já não estão interessados em parecer naturais. Um exemplo é o marine pattern camouflage, usado para se combinar num ambiente onde é visto por tecnologia vídeo – já não tenta ser uma árvore, ou uma rocha ou o deserto – parecendo-se com uma imagem pixelizada. A adaptação à realidade significa tornar-se semelhante a uma imagem vídeo.
O Marpat, abreviatura de marine pattern, introduzido entre os finais de 2002 e o início de 2005 pelo corpo de marines norte americano, também conhecido por padrão digital, é composto por pequenos rectângulos, pixels de cor que se comprovaram mais eficientes que os manchados tradicionais no efeito de camuflagem. Este padrão, gerado computacionalmente, é desenhado para reduzir as possibilidades de reconhecimento pelos dispositivos de visão nocturna. No entanto, o Marpat mantém duas versões, uma para o deserto e outra para a floresta. O que nos permite, mais uma vez, reforçar que as alterações da realidade obrigam a um respectivo ajuste das imagens. Se numa primeira instância, as condições do deserto ou da floresta obrigam a uma respectiva adaptação tonal, podemos aqui depositar a problemática geral das imagens que se parecem com o real, para, assim alterarem a própria realidade.
A questão essencial da camuflagem no contexto desta reflexão é ser um processo visual de desaparecimento. Todo o processo de simulação assenta no fundamento da semelhança, para anular as diferenças ao seu meio. No fim, é uma imagem que desaparece na semelhança ao que a envolve. Se, por um lado, é a semelhança que, na origem das imagens, lhes fornece a possibilidade de existência, é pela semelhança que o seu desaparecimento acontece.
Esconder é uma forma de poder. Identifica-se no período cambriano, aproximadamente há cerca de 540 milhões de anos atrás, o aparecimento dos primeiros seres multicelulares que desenvolveram sensibilidade à luz. Esta habilidade, ainda que rudimentar, confere uma óbvia vantagem de sobrevivência quer potenciando predadores como protegendo presas. Podemos entender aqui, na sua complexidade, o início do desenvolvimento da visão. A aparência torna-se um aspeto relevante no decurso da sobrevivência. A evolução do olho, ao iniciar uma corrida ao armamento entre organismos que se tornam cada vez mais conscientes do ambiente que os rodeiam, é considerada, neste período, um dos catalisadores na explosão das formas de vida. No império contemporâneo da visibilidade, a necessidade de camuflagem relembra-nos que controlar a invisibilidade é uma forma de domínio sobre a visibilidade. As imagens no seu processo de semelhança adaptavam-se à realidade, hoje a realidade parece adaptar-se à condição das imagens, porque estas deixaram de ser semelhantes à natureza ou a qualquer outra realidade.
Tornarmo-nos iguais ao pixel para desaparecer no espaço das imagens, é tornarmo-nos parecidos com a sua matéria. Os camuflados modernos estão interessados em se transformar em matéria visual, dos ecrãs e dos dispositivos de visualização, para assim desaparecerem no mundo virtual das imagens digitais. Podemos defender aqui, não a possibilidade de identificar uma dominação da tecnologia relativamente à natureza. Não obstante, os comportamentos de guerra, génese de grande parte da tecnologia de ver e tornar invisível, definem um modus operandi que se alarga e inscreve no humano e na totalidade do espectro social. A posição não é tecnodeterminista, neste caso - muito pelo contrário, a natureza define nos seus desígnios o poder da visibilidade e da invisibilidade, polarizando presas e predadores. A guerra, neste seguimento, é um desvio no processo de sobrevivência com contornos tecnológicos.
A invisibilidade tornou-se um bem mais escasso, mais raro, mais caro, enfim, menos acessível. Atrás da ideologia da imagem, que vigora no que se denomina de sociedade dos media visuais, opera-se transversalmente a manutenção de presas e predadores em todos os meios económicos e sociais através dos seus mecanismos de poder, é aí que reside a invisibilidade. Quando tudo e todos se transformam em produto, também as imagens, atrás do poder da sua sedução se transformam em predadores.
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020