[Filme]
Quo Vadis, Aida? – A Re-imagem Necessária
Jasmina Zbanic, 2020
LUÍS MIGUEL MARTINS MIRANDA
Das imagens de um tempo para as imagéticas de um outro, o olhar é o mesmo e a sua completa diferenciação. Esse acto de ocularidade, de busca de uma lembrança, ida e arquivada, de imagens feitas e imagens destruídas, de acções e pessoas já partidas, enterradas em mortes subterrâneas, fantasmas da sua tragédia esquecida, e agora retomada, re-imagificada, como uma necessária re-filmagem desse horror tão insuspeito, tão equivocado (imagem de um equívoco: como guerra? Como morte? Somos e estamos na Europa?) que nos foi dado-transmitido pela imagem televisiva dos anos 90.
O que dali veio, da Srebenica de 1995, para ser re-filmado e rememorado no digital de 2020? O primeiro fito de Jasmina Zbanic, ao tomar para si a ousadia e a acção de reconfigurar novas imagens do massacre de Srebenica, é a transmutação imagética do memorial. As imagens-memória da televisão granulada, que também ela viu, são o argumento doloroso de quem pôde testemunhar, pela mediação do dispositivo – verdadeiro no seu engano e enganador na sua verdade – as aflições e os horrores do que parecia ser impossível de acontecer na Europa: de que se pudesse matar um vizinho, de que antigos colegas de escola se pudessem aniquilar, que ódios mútuos pudessem levar a programas pensados de movimentação populacional, com propósito final de limpeza e destruição étnica. Jamila lembra-se, ela estava lá, viu essas imagens e outras mais.
Mas para quem, nessa mesma Europa, mais a Oeste ou mais a Norte, mais perto ou mais longe, viu essas imagens de televisão, perguntou do porquê desses corpos caídos, das casas esburacadas (afinal, casas iguais às suas), as (boas) estradas furadas, o aspecto insondável de uma modernidade tão violentada e destruída. Como pode estar a acontecer?, pergunta verbalizada como um presente de um passado que é necessário re-olhar e reimagificar. Se essas imagens ficam na memória mais recuada, no seu grão fugidio e movente das imagens-guerra e das imagens-aniquilação, então o acto de filmar este Quo Vadis, Aida? – através de um cinema, também ele já outro, mais digital e logo mais clínico, e que pretende ser uma despojada ficcionalização do horror, mas feito presente pela encenação e facto fílmico – é a necessária re-imagem das imagens memoriais dessa televisão analógica que se têm guardado nestes anos todos, em que a estupefacção do acontecimento se tem mantido arquivado e, no entanto, ainda está marcado pela sua impossível possibilidade: o que aconteceu, realmente está acontecido, estava e está acontecido.
Essas são as imagens do contemporâneo. O grão vídeo da guerra da Bósnia é igualmente uma imagificação e incrustação de um contemporâneo que é/foi o nosso. A re-imagem do massacre de Srebenica é a procura dessas imagens por entre as imagens: as que não foram filmadas pelas equipas de televisão, as que descem mais abaixo, à ideia do que poderá ter sido estar lá, realmente lá. De certas imagens para outras imagens, de um certo contemporâneo para outro contemporâneo, há o sentido claro do que é ou não é aquilo a filmar. A ubíqua câmara vídeo dos anos 90 filmou mortes e execuções (essas imagens foram provas documentais nos julgamentos de guerra), mas Zbanic não filma o matar do corpo directamente, há sempre a parede que tapa, a linha de pessoas que seguem para o fora-de-campo. O horror é o mesmo, antecipa-o, mas não há a fria marca do registo do horrendo cru. Essa escolha é uma de quem filma, da cineasta que faz novas imagens, mas que não deixa de instilar a mesma inquietação – se não mais – e o mesmo descrédito sobre quem elas se representam: os carrascos anónimos, os soldados equívocos, o vizinho do apartamento do lado feito inimigo armado.
Da modernidade à inanidade, do modelo-sociedade que se queria e parecia avançado à regressão da luta étnica, o filme é também sobre a vacuidade prescrita do corpo: é ele, uma vez mais, linha de uma lista, unidade para extinção, um número a diminuir. A separação dos corpos em filas diferentes invoca outras listas e outras filas, mas uma mesma ignomínia. Os corpos que se separam e os corpos que se movem, aqueles que fogem e aqueles que perseguem, afirmam também uma operação imagética levada a cabo por Zbenic que organiza o seu filme e a sua encenação como uma constante reconfiguração dos espaços-sítios e dos espaços-corpos: os grupos de habitantes que fogem da cidade tomada, as massas que atravessam as estradas e que entram no quartel do batalhão holandês, o corpo maior que é a grande massa de pessoas que não deixam entrar no complexo e, por fim, os bósnios-sérvios que irrompem pela instalação dentro, mancha verde e mortal, que agrupa e arquiva corpos outros. Os mapas de corpos que serão, em breve, fantasmas a perder dos mapas geopolíticos que aquela guerra, e a sua consequente paz-medo, virão a instaurar. Por entre todos este mapas e reconfigurações, há um corpo que corre de um lado para o outro, em constante e permanente tensão, e é sobre ele que Zbanic corporiza o seu filme, o de Aida Selmanagic (Jasna Djuricic). Ela que recobre espaços que logo ficarão vazios, ela que está sempre a esconder o marido e os filhos, ela que oculta a verdade dos seus conterrâneos, pois tem que traduzir as mentiras que lhe contam, ela que carrega a maior tensão de todas - e que com ela tensifica o filme – a de que nunca terá o poder para mudar o inevitável: a deriva para a morte e para a aniquilação. Por mais que tente, ela não consegue salvar os homens da sua família. Assim foi o massacre de Srebenica.
Assim foi a guerra da Bósnia. Vimos as imagens na televisão. Neste filme, e no seu cinema, ficamos prostrados perante a suas necessárias re-imagens.
OLHAR—VER
Bostofrio: Où Le Ciel Rejoint La Terre
Inês Costa
O Pecado
Luís Miguel Martins Miranda
Vazante
Felipe Argiles Silveira
On abortion (Laia Abril, 2018)
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Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
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4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020