NAVIOS NEGREIROS
VÍTOR MARTINS
A interrupção do nada, a transformação do mínimo em existência, o dar vida à luz e o transformar o devaneio em imagem, por meio de um processo de carácter mecânico, é o confronto entre dois poderes: o sonhar e o ver. Para Bachelard, quem sonha muito perde o olhar, e quem vê muito perde a profundidade dos sonhos. As coisas sólidas não são encerradas em si mesmas, nos seus volumes. Talvez seja esse mergulho na imaginação e o processo de dar vida aos objetos que movem as imagens estáticas, que dão vida ao sistema mórbido de fantasmas presos em papel.
Navios Negreiros (2020) navega em alguns desses questionamentos. O livro é uma junção de três corpus de imagens. Imagens fotográficas que buscam rasgos, marcas em abstracções monocromáticas; imagens de repositórios de escravidão (contendo documentos, ilustrações e gravuras de domínio público); e também com reproduções de páginas e tabelas de um livro técnico de Robert E. Browner, intitulado Fotografia Arte e Técnica (1967). Todas as imagens são negativadas, ou seja, invertidas as valências de preto e branco, buscando uma noção de volta e de retorno. A única parte do livro que não é imagem consiste numa sequência de números escritos à mão. São os números de série dos navios negreiros que desembarcaram no Brasil ou em países vizinhos cujos escravos estavam destinados ao Brasil. Todos os números, assim como as imagens, foram invertidos, são escritos de trás para a frente.
É um convite atento a uma história silenciada: a tragédia da diáspora africana, seus mares e tormentas. Página a página vemos em Navios Negreiros o resultado poético de um jogo que se utiliza da iconografia colonial, contemporânea do desenvolvimento da fotografia, para trazer à tona um triste paradoxo: o do desenvolvimento tecnológico, por um lado, e da desumanidade do sistema esclavagista, por outro.
O trabalho de transposição da ideia de Navios Negreiros, da junção dos diferentes corpus de imagens, da captura fotográfica, do escavamento poético de imagem até virar livro, não fecha janelas, ainda que se ponha como algo a ser apresentado, como obra. Um livro é também uma libertação do pigmento, mesmo fixo. Para desaguar a narrativa, ir da capa ao fim, o tacto é tão importante quanto a visão. Dentro do breu, da poética do escuro, do mostrar pela ocultação, de sensibilizar outras adesões, o tacto se eleva. Talvez seja impossível dizer de um trabalho visual, ou de um processo que envolve imagem, que a visão perde importância, mas, na poética proposta, outros sentidos se aguçam.
CÂMARA
LA LOUPE ET SES ÉCRITS
Fernanda Toniazzi
SEM MOVIMENTOS VOLUNTÁRIOS
Pedro Magalhães
BULDONHE
Miguel Teodoro
RUÍNAS E REMINISCÊNCIA
Bernardo Sousa Santos
TRÊS ATELIERS DE ARTISTAS CONTEMPORÂNEAS
Maria João Ferreira
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
Avenida Rodrigues de Freitas, 265
4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020