Ana Paula Vitorio
Há um número expressivo de fotolivros sobre (ou contextualizados) a cidade de São Paulo. São publicações tão importantes quanto variadas. Vão de Paranóia, de Roberto Piva e Wesley Duke Lee (1963) a Perímetros, de Keiny Andrade (2022), passando por Barra Funda: esquinas, fachadas e interiores, de Dulce Soares (1982) Entre duas esquinas da rua Celso Garcia, de Lucia Mindlin Loeb (2007); São Paulo, de Daido Moriyama (2009); Vila Prudente 1979-1981, de João Luiz Musa (2012); São Paulo, fora de alcance, de Mauro Restiffe (2014); Roose, de Marina Nacamuli (2017); Baixa Estima de Cícero Costa (2021) entre outros.
O fotolivro de George Love é uma importante contribuição nesse grupo. Uma das poucas publicações feitas pelo fotógrafo, São Paulo Anotações particulariza-se por relacionar abordagem documental e experimentação da fotografia como signo estético. O fotolivro foi publicado em 1982 pela editora Raízes com uma tiragem de 500 exemplares. Além de textos introdutórios do autor e de Benedito de Toledo, São Paulo Anotações é composto por 98 fotografias em cor, feitas por Love entre setembro de 1966 e fevereiro do ano da sua única edição. O fotógrafo também é quem assina o design, junto com Antônio Marcos da Silva e Telmo Pamplona.
George Love tem participação significativa na assimilação da fotografia pela arte contemporânea no Brasil[1]. Ao longo da sua carreira, esteve atento ao papel desempenhado pelas formas e pela abstracção na composição da imagem fotográfica. Mais do que se dedicar ao assunto fotografado, Love interessou-se por técnicas e métodos que lhe possibilitassem diversificadas maneiras de produção fotográfica. Atento à relevância dos suportes nos processos criativos, além de priorizar soluções espaciais inovadoras aquando da publicação de suas fotografias em revistas e jornais, também negava modelos tradicionais de exibição das suas imagens em exposições.
São Paulo Anotações é representativo das experimentações e propostas de George Love. No fotolivro, o autor explora não só a fotografia como um processo de criação – de imagens e objectos semióticos – como as possibilidades narrativas e estéticas da relação entre fotografia e livro. Na obra, a manipulação da luz pelo aparato técnico associa-se à manipulação da fotografia na página. Associadas ao espaço gráfico das páginas sequenciadas, as imagens fotográficas alternam-se entre registos de cenas e personagens quotidianos (transeuntes, vitrines, calçadas, prédios, meios de transportes etc.) e apreensões de formas abstractas obtidas por meio de recursos como filtros de cor, rebaixamento de fotometria, exploração de contraluz, variação de ângulos, entre outros.
Propostas como se fossem anotações, as imagens fotográficas, observadas no livro, funcionam não só como fragmentos de São Paulo, mas como o pensamento por montagem exercitado por Love. Conforme Eisenstein, a montagem consiste num artefacto de operação intelectual no qual a justaposição – seu procedimento fundamental – ocorre como um método criativo.[2] Afirmar, portanto, que a criação de São Paulo Anotações é um processo de montagem implica um exercício de engenharia reversa onde analiso as especificidades das relações que se estabelecem na obra envolvendo seus múltiplos sistemas de signo. A seguir estão exemplos de dois dos principais processos de montagem identificados no livro: as justaposições por tonalidade (e seus efeitos) e as justaposições intelectuais, que tem entre seus principais resultados a metáfora visuais.
Dípticos como relações tonais
Dos cinco métodos de montagem descritos por Eisenstein, o tonal corresponde àquele cuja justaposição fundamenta-se no aspecto dominante e característico de cada fragmento, em seu «tom geral», ou «dominante tonal básica»[3]. O cineasta fala sobre um princípio «harmónico-visual do plano»[4], característico da montagem tonal, alcançado pelas combinações que exploram as características formais do fragmento. Mais do que construções semânticas, as relações por tonalidade exploram características plásticas das partes que relaciona. No fotolivro de George Love, as correspondências tonais são frequentes na formação de dípticos. São casos nos quais aspectos formais das fotografias, como características das figuras predominantes, construção gráfica, relação entre planos, incidência da luz e cromatismo, além de efeitos de manipulações técnicas específicas (como sobreposições, por exemplo), são constrangidos, pela própria relação díptica, que funciona como dominante tonal que promove correspondências entre as partes. Tratam-se de processos semióticos nos quais os aspectos «icónicos»[5] das fotografias são salientados pela relação, de modo a tornar a própria materialidade fotográfica um objecto de referência.
Os dípticos das duplas páginas 22-23 e 118-119 são exemplos de justaposições tonais que salientam os aspectos cromáticos das fotografias que relaciona. No primeiro caso (Fig. 3), tons de azul funcionam como dominante tonal básica que fundamenta a justaposição das duas fotografias-fragmentos. Além do aspecto cromático, dados estruturantes da imagem, como composição vertical e a construção ascendente das figuras em quadro, funcionam como dominantes tonais secundárias. Já no segundo caso (Fig. 4), o resultado obtido por meio da supressão do canal de ciano na impressão – um recurso muito utilizado nos processos fotomecânicos das décadas de 1960 e 1970[6] – funciona como a dominante tonal que relaciona as duas fotografias por similaridade. Tal como no díptico anterior, a estruturação das imagens apresenta-se como uma dominante secundária que promove correspondências entre as duas fotografias.
Em São Paulo Anotações, há ainda casos em que a composição da imagem fotográfica é explorada, de maneira mais acentuada, como elemento de montagem. É o que ocorre em dípticos como o da figura 5, em que a estruturação da fotografia se torna, na justaposição das imagens nas páginas, uma dominante tonal. Características como ângulos de vista e perspectiva, diferenciação entre planos e o uso do efeito de luz (e sombra) como forma funcionam de modo a criar na superfície fotográfica figuras angulares que remetem às criações suprematistas e às fotografias construtivistas que se tornaram conhecidas na primeira metade do século XX. Constrangidas pela relação díptica a funcionar como dominantes tonais, essas características tornam-se os objetos a que as fotografias referem e tornam-se signos da São Paulo de George Love. Nesse processo que é tonal, mas também de construção de metáforas visuais, as anotações de Love descrevem uma cidade que se materializa nas penumbras e na rigidez das formas.
Certa vez, Love descreveu Amazónia (Andujar e Love, 1978) como um livro construído para traduzir a tese de que aquilo que a fotografia mostra é uma impressão da realidade[7]. Ele acrescentou: «o que você vê é a foto da floresta, não a própria. Não é o céu que você vê, é o filme. Não é um livro da Amazônia, é um livro de filmes»[8]. Essa fala é um indicativo da trajectória de Love na fotografia e, por isso, também pode iluminar análises sobre São Paulo Anotações. A fotografia de Love versa sobre o meio fotográfico e seu potencial criativo (no sentido de ‘aquilo que é capaz de criar’). Como investigações metassemióticas, as imagens produzidas por Love e justapostas no livro de 1982 não se referem a questões como “o que é São Paulo?”, mas a indagações como “qual São Paulo emerge da relação cidade-aparato fotográfico?”. Como um mediador dessa relação, Love busca na imagem a cidade que se constrói na própria imagem e que só ali é capaz de existir.
Isso fica evidente quando observamos os aspectos formais predominantes das fotografias que compõem o livro. Se, como no exemplo anterior, a precisão no contorno das figuras torna-se um signo da cidade, em casos como os mostrados nas figuras 2 e 6, múltiplas exposições fundem formas e geram noções de fluidez espáço-temporal. Essa fusão das formas – aqui obtidas por exercícios de superexposição e dupla exposição em cromos e negativos – ocorrem como dominantes tonais e, consequentemente, como principais sínteses criativas da justaposição dos elementos envolvidos nas imagens fotográficas e nos dípticos.
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Fotografia auto-referente
Da perspectiva eisensteiniana, o conflito, tanto formal quanto simbólico, funciona como princípio criativo – e isso fundamenta a teoria da montagem. Ao considerarmos essa noção para analisarmos São Paulo Anotações, observamos que as fotografias, criadas por Love e relacionadas entre si no livro, emergem do conflito entre as variadas impressões visuais envolvidas na observação do que está em quadro. Essas relações por colisão ocorrem como variações entre dominantes gráficas, de planos, distinções de formas, volumes, na incidência de luz etc. O conflito gráfico é um tipo básico de colisão formal explorado num número significativo de construções fotográficas reunidas em Anotações. Nesses casos, como no exemplo da figura 7, o limite entre as formas apresenta-se como traços bem marcados em composições caracterizadas pela regularidade nas relações entre as partes. Além de justaposição fundamentada em aspectos gráficos, podemos considerar este um exemplo, também, de montagem dentro do plano na qual a estruturação da imagem fotográfica baseia-se em atonalidades[9] – ou seja, nas disparidades das formas relacionadas – que impedem as possibilidades de homogeneização daquilo que é visto impresso na página. No caso desse exemplo, as linhas em tons de azul funcionam como atonalidade que contrasta com as porções espacialmente predominantes na fotografia.
Marcada por uma acentuada distinção cromática e formal entre as partes e pelo desprendimento de atribuições miméticas, essa é uma imagem fotográfica que actua, predominantemente, como um sistema de signos cujos referentes são seus próprios aspectos icónicos.
Quase tão frequente quanto o conflito gráfico, em São Paulo Anotações, é o conflito de luz. No exemplo apresentado (Fig. 8), a luz é experimentada como fragmento de montagem e é justaposta com sua própria ausência. Esse é mais um caso em que, no livro de George Love, a imagem fotográfica desprende-se de suas relações indexicais (com o objecto cujas formas aparentes tenham causado a impressão fotográfica) para referenciar a si mesma, as suas próprias formas, métodos, técnicas e, sobretudo, à própria génese fotográfica.
Como já referido, Anotações, mais que uma reunião de fotografias sobre São Paulo, é um livro sobre impressões fotográficas, sobre exercícios criativos baseados em aspectos visuais da capital paulista. Encontramos indícios desse processo também nos critérios de disposição das imagens nas páginas. Quando Love, Silva e Pamplona optam por incorporar as extremidades do cromo como margens da fotografia na impressão (Fig. 9), eles constrangem os aspectos materiais da imagem fotográfica a actuar como elemento gráfico na página. Se em termos de montagem intelectual, a fotografia em questão evoca os ideais de desenvolvimento urbano e aspirações de São Paulo em se consolidar como metrópole; em termos formais, a imagem fotográfica, integrada no livro, funciona, mais uma vez, como investigação das possibilidades semióticas do meio fotográfico.
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1 São Paulo Anotações (Love, 1982), Capa.
2 Páginas 70-71.
3 Páginas 22-23.
4 Páginas 118-119.
5 Páginas 68-69.
6 Páginas 68-69.
7 Página 75.
8 Página 43.
9 Página 89.
10 Página 47.
11 Página 133.
12 Página 149.
Montagem Intelectual
e Auto-retrato
Nenhuma imagem fotográfica ocorre fundamentada em apenas um tipo de justaposição. Entretanto, é válida a tentativa de identificar, em cada uma delas, padrões predominantes dessas relações. No caso representado pela figura 10, por exemplo, o choque entre as formas e o conflito cromático salientam-se em comparação com as demais relações estruturantes da fotografia.
Em termos de montagem intelectual, a imagem funciona como uma referência ao próprio fotógrafo, a um viajante que acessa São Paulo durante um percurso e que mantém dela determinada distância. George Love viveu na cidade entre 1966 e 1987, e como exposto em algumas das entrevistas que concedeu, utilizou o aparato fotográfico como forma de se relacionar com a capital paulista[10]. Por meio da captura da face anónima do viajante, Love constrói um auto-retrato, remete a si mesmo em sua experiência como alguém que passa pela cidade e que tenta, por meio da visão, apreendê-la em meio à pressa imposta pelo tempo, pelas características do percurso e da paisagem. Nesse processo de síntese intelectual, a fotografia ocorre como uma metáfora que o artista faz de si mesmo e de suas anotações visuais em São Paulo.
Em São Paulo Anotações há pelo menos mais dois casos nos quais o exercício de autorreferência praticado por George Love ocorre de maneira evidente. Cito como exemplo as fotografias das figuras 11 e 12, nas quais é possível observar a inserção literal do fotógrafo como parte do objecto de registo. No primeiro caso, Love enquadra sua própria figura no jogo, de espelhamentos, transparências e múltiplos enquadramentos, que promove na criação da imagem. Quanto à segunda fotografia, foi o próprio autor o primeiro a apontá-la como um auto-retrato, na introdução do livro: «[u]ma foto de águas claras com uma sombra mal definida, retrata minha própria sombra (...)». Como montagem intelectual, como construção fotográfica por meio da qual Love articula e expõe seu pensamento, o fotógrafo, mais uma vez, experimenta e reflecte sobre a sombra como um registo indexical que, ao mesmo tempo em que contraria, é causado pela incidência da luz, condição primeira da existência fotográfica.
Em resumo, tanto os autorretratos de Love em Anotações quanto suas experimentações formais praticadas em diferentes direcções e níveis, indicam que o fotolivro ocorre como experimentação das possibilidades de auto-referencialidade da própria fotografia. A luz e o material fílmico tornados figuras e elementos gráficos nas páginas, as sombras acentuadas como responsáveis por contornos de formas, a fonte luminosa além de enquadrada, reflectida, multiplicada e filtrada fazem com que a imagem fotográfica se apresente – a quem acessa o fotolivro – como o próprio objeto a ser referido. Além de explorar essas diferentes maneiras por meio das quais a fotografia pode actuar como um processo metassemiótico (casos em que frequentemente observamos montagem baseada em justaposições tonais e atonais), em São Paulo Anotações, Love experimenta a construção fotográfica como processo de busca por correspondências tríplices entre fotógrafo, objecto fotografado e fotografia.
[1] Douglas Canjani, «O fotojornalismo expandido de George Love no Brasil: breve aproximação», in Nhengatu -Revista iberoamericana para Comunicação e Cultura contrahegemônicas, v. 2, n.º 3, 2015.
[2] Sergei Eisenstein, A forma do filme. Rio de Janeiro, Zahar, 2002.
[3] Ibid., p. 82.
[4] Ibid., p. 74.
[5] Charles Sanders Peirce, Collected Papers. Cambridge, Harvard University Press, (1931-1958), CP 1.369, CP 1.558.
[6] Angelo Manjabosco, O Brasil não é para principiantes: Lew Parrella, Geoge Love e David Zingg, fotógrafos norte-americanos na revista Realidade (1966-1968). Tese de Doutoramento. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2016.
[7] José Alberto de Boni, Verde Lente: fotógrafos brasileiros e a natureza. São Paulo, Empresa das Artes, 1994,
[8] Ibid., p.36.
[9] Eisenstein (op. cit), na definição da montagem atonal, afirma ser esse um processo que ocorre por meio do conflito entre o tom principal do fragmento (uma dominante) e uma atonalidade.
[10] Douglas Canjani, op. cit.
[11] Georges Love, São Paulo Anotações, São Paulo, Raízes, 1982, p. 19.
Situação Crítica
Além do fotograma
Susana S. Martins
What do U Want 4 Xmas?
Vera Carmo
Da pandemia das imagens às imagens necessárias
Fernando José Pereira
Em defesa das imagens pobres
Hito Steyerl
O azul das pirâmides
Susana Lourenço Marques
Thriller, suspense e livros de fotografia
Celia Vega Pérez & Luis Deltell
Ana Paula Vitorio
Dípticos como relações tonais
Dos cinco métodos de montagem descritos por Eisenstein, o tonal corresponde àquele cuja justaposição fundamenta-se no aspecto dominante e característico de cada fragmento, em seu «tom geral», ou «dominante tonal básica»[3]. O cineasta fala sobre um princípio «harmónico-visual do plano»[4], característico da montagem tonal, alcançado pelas combinações que exploram as características formais do fragmento. Mais do que construções semânticas, as relações por tonalidade exploram características plásticas das partes que relaciona. No fotolivro de George Love, as correspondências tonais são frequentes na formação de dípticos. São casos nos quais aspectos formais das fotografias, como características das figuras predominantes, construção gráfica, relação entre planos, incidência da luz e cromatismo, além de efeitos de manipulações técnicas específicas (como sobreposições, por exemplo), são constrangidos, pela própria relação díptica, que funciona como dominante tonal que promove correspondências entre as partes. Tratam-se de processos semióticos nos quais os aspectos «icónicos»[5] das fotografias são salientados pela relação, de modo a tornar a própria materialidade fotográfica um objecto de referência.
Os dípticos das duplas páginas 22-23 e 118-119 são exemplos de justaposições tonais que salientam os aspectos cromáticos das fotografias que relaciona. No primeiro caso (Fig. 3), tons de azul funcionam como dominante tonal básica que fundamenta a justaposição das duas fotografias-fragmentos. Além do aspecto cromático, dados estruturantes da imagem, como composição vertical e a construção ascendente das figuras em quadro, funcionam como dominantes tonais secundárias. Já no segundo caso (Fig. 4), o resultado obtido por meio da supressão do canal de ciano na impressão – um recurso muito utilizado nos processos fotomecânicos das décadas de 1960 e 1970[6] – funciona como a dominante tonal que relaciona as duas fotografias por similaridade. Tal como no díptico anterior, a estruturação das imagens apresenta-se como uma dominante secundária que promove correspondências entre as duas fotografias.
Em São Paulo Anotações, há ainda casos em que a composição da imagem fotográfica é explorada, de maneira mais acentuada, como elemento de montagem. É o que ocorre em dípticos como o da figura 5, em que a estruturação da fotografia se torna, na justaposição das imagens nas páginas, uma dominante tonal. Características como ângulos de vista e perspectiva, diferenciação entre planos e o uso do efeito de luz (e sombra) como forma funcionam de modo a criar na superfície fotográfica figuras angulares que remetem às criações suprematistas e às fotografias construtivistas que se tornaram conhecidas na primeira metade do século XX. Constrangidas pela relação díptica a funcionar como dominantes tonais, essas características tornam-se os objetos a que as fotografias referem e tornam-se signos da São Paulo de George Love. Nesse processo que é tonal, mas também de construção de metáforas visuais, as anotações de Love descrevem uma cidade que se materializa nas penumbras e na rigidez das formas.
Certa vez, Love descreveu Amazónia (Andujar e Love, 1978) como um livro construído para traduzir a tese de que aquilo que a fotografia mostra é uma impressão da realidade[7]. Ele acrescentou: «o que você vê é a foto da floresta, não a própria. Não é o céu que você vê, é o filme. Não é um livro da Amazônia, é um livro de filmes»[8]. Essa fala é um indicativo da trajectória de Love na fotografia e, por isso, também pode iluminar análises sobre São Paulo Anotações. A fotografia de Love versa sobre o meio fotográfico e seu potencial criativo (no sentido de ‘aquilo que é capaz de criar’). Como investigações metassemióticas, as imagens produzidas por Love e justapostas no livro de 1982 não se referem a questões como “o que é São Paulo?”, mas a indagações como “qual São Paulo emerge da relação cidade-aparato fotográfico?”. Como um mediador dessa relação, Love busca na imagem a cidade que se constrói na própria imagem e que só ali é capaz de existir.
Isso fica evidente quando observamos os aspectos formais predominantes das fotografias que compõem o livro. Se, como no exemplo anterior, a precisão no contorno das figuras torna-se um signo da cidade, em casos como os mostrados nas figuras 2 e 6, múltiplas exposições fundem formas e geram noções de fluidez espáço-temporal. Essa fusão das formas – aqui obtidas por exercícios de superexposição e dupla exposição em cromos e negativos – ocorrem como dominantes tonais e, consequentemente, como principais sínteses criativas da justaposição dos elementos envolvidos nas imagens fotográficas e nos dípticos.
Fotografia auto-referente
Da perspectiva eisensteiniana, o conflito, tanto formal quanto simbólico, funciona como princípio criativo – e isso fundamenta a teoria da montagem. Ao considerarmos essa noção para analisarmos São Paulo Anotações, observamos que as fotografias, criadas por Love e relacionadas entre si no livro, emergem do conflito entre as variadas impressões visuais envolvidas na observação do que está em quadro. Essas relações por colisão ocorrem como variações entre dominantes gráficas, de planos, distinções de formas, volumes, na incidência de luz etc. O conflito gráfico é um tipo básico de colisão formal explorado num número significativo de construções fotográficas reunidas em Anotações. Nesses casos, como no exemplo da figura 7, o limite entre as formas apresenta-se como traços bem marcados em composições caracterizadas pela regularidade nas relações entre as partes. Além de justaposição fundamentada em aspectos gráficos, podemos considerar este um exemplo, também, de montagem dentro do plano na qual a estruturação da imagem fotográfica baseia-se em atonalidades[9] – ou seja, nas disparidades das formas relacionadas – que impedem as possibilidades de homogeneização daquilo que é visto impresso na página. No caso desse exemplo, as linhas em tons de azul funcionam como atonalidade que contrasta com as porções espacialmente predominantes na fotografia.
Marcada por uma acentuada distinção cromática e formal entre as partes e pelo desprendimento de atribuições miméticas, essa é uma imagem fotográfica que actua, predominantemente, como um sistema de signos cujos referentes são seus próprios aspectos icónicos.
Quase tão frequente quanto o conflito gráfico, em São Paulo Anotações, é o conflito de luz. No exemplo apresentado (Fig. 8), a luz é experimentada como fragmento de montagem e é justaposta com sua própria ausência. Esse é mais um caso em que, no livro de George Love, a imagem fotográfica desprende-se de suas relações indexicais (com o objecto cujas formas aparentes tenham causado a impressão fotográfica) para referenciar a si mesma, as suas próprias formas, métodos, técnicas e, sobretudo, à própria génese fotográfica.
Como já referido, Anotações, mais que uma reunião de fotografias sobre São Paulo, é um livro sobre impressões fotográficas, sobre exercícios criativos baseados em aspectos visuais da capital paulista. Encontramos indícios desse processo também nos critérios de disposição das imagens nas páginas. Quando Love, Silva e Pamplona optam por incorporar as extremidades do cromo como margens da fotografia na impressão (Fig. 9), eles constrangem os aspectos materiais da imagem fotográfica a actuar como elemento gráfico na página. Se em termos de montagem intelectual, a fotografia em questão evoca os ideais de desenvolvimento urbano e aspirações de São Paulo em se consolidar como metrópole; em termos formais, a imagem fotográfica, integrada no livro, funciona, mais uma vez, como investigação das possibilidades semióticas do meio fotográfico.
[1] Douglas Canjani, «O fotojornalismo expandido de George Love no Brasil: breve aproximação», in Nhengatu -Revista iberoamericana para Comunicação e Cultura contrahegemônicas, v. 2, n.º 3, 2015.
[2] Sergei Eisenstein, A forma do filme. Rio de Janeiro, Zahar, 2002.
[3] Ibid., p. 82.
[4] Ibid., p. 74.
[5] Charles Sanders Peirce, Collected Papers. Cambridge, Harvard University Press, (1931-1958), CP 1.369, CP 1.558.
[6] Angelo Manjabosco, O Brasil não é para principiantes: Lew Parrella, Geoge Love e David Zingg, fotógrafos norte-americanos na revista Realidade (1966-1968). Tese de Doutoramento. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2016.
[7] José Alberto de Boni, Verde Lente: fotógrafos brasileiros e a natureza. São Paulo, Empresa das Artes, 1994,
[8] Ibid., p.36.
[9] Eisenstein (op. cit), na definição da montagem atonal, afirma ser esse um processo que ocorre por meio do conflito entre o tom principal do fragmento (uma dominante) e uma atonalidade.
[10] Douglas Canjani, op. cit.
[11] Georges Love, São Paulo Anotações, São Paulo, Raízes, 1982, p. 19.
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020