Susana S. Martins
O fílmico, afirma Roland Barthes num dos seus textos mais referenciais, «muito paradoxalmente, não pode ser captado no filme ‘em situação’, ‘em movimento’, ‘ao natural’, mas apenas, ainda, nesse artefacto maior que é o fotograma».[1] Se, por um lado, o fotograma aparenta ser da ordem da ilustração, do extracto, da amostra, ou da redução da obra fílmica pela imobilização, por outro lado, Barthes reconhece no fotograma uma amplitude semântica única, advogando que este deve ser entendido para além da sua fixidez e restrição temporal.
O seu argumento é o de que o fílmico que no fotograma está contido não tem que ver com o movimento, ou falta dele. O fílmico do fotograma está antes num terceiro sentido que dele emerge, para além do sentido óbvio ou simbólico, e radica na capacidade de activar um importante desdobramento, nem sempre lógico, no qual filme e fotograma não se ofuscam entre si mas estabelecem uma «relação de palimpsesto» em que o fotograma é já fragmento de um outro texto.
No seu elogio do fotograma, Barthes prossegue, porém, referindo a existência de outras artes que de algum modo «continuam» o fotograma, e a história e a diegese, como é o caso das fotonovelas – formas que o autor classifica de «irrisórias, ordinárias, estúpidas, dialógicas da subcultura de consumo».[2] Mais do que expressar o lugar que Barthes parece dedicar à fotonovela na sua hierarquia pessoal de valores artísticos, as suas palavras são aqui especialmente relevantes na medida em que bem exemplificam a forma como a fotonovela, nas suas múltiplas variações, tem sido generalizadamente entendida, e frequentemente depreciada (quando não mesmo ignorada), nos circuitos culturais e académicos desde a sua popularização no final dos anos de 1940.
Se tal falta de atenção pode ser justificável por uma série de razões relativamente consensuais – as fotonovelas tendem a ser graficamente pobres, limitadas nos temas e repetitivas nas formas –, ela não deixa de ser algo redutora. Uma análise aprofundada desta prática foto-textual permitirá compreender que a fotonovela é bem mais do que um subgénero ou uma sucessão de imagens de personagens sedutoras com balões de fala justapostos; ela é um meio (medium) híbrido com autonomia própria, capaz de levantar questões culturais estimulantes às quais, separadamente, as lentes da fotografia, do filme ou da banda desenhada não alcançam dar resposta adequada ou suficiente. Para além disso, a longa ausência de estudos históricos ou teóricos sobre fotonovelas encobriu igualmente outros aspectos, designadamente a existência de variações particulares e igualmente esquecidas deste tipo de edições, como é por exemplo o caso da fotonovela fílmica (cinéphoto-roman), através da qual o cinema encontrou outra via de difusão, nas páginas impressas de revistas populares.
Neste contexto onde muito está ainda por explorar, duas publicações recentes vêm iluminar, com rigor e rasgo criativo, este território tão estereotipado como surpreendente e desconhecido. A primeira delas é um livro-álbum de forte vocação artística, publicado no final de 2020 pela editora francesa JBE – Jean Boîte Éditions.[3] Na sua dimensão objectual, trata-se de um volume de médio-grande formato, fino e graficamente sóbrio, cuja capa branca ostenta a negro um título simples e não particularmente revelador: Une fille comme toi. No seu interior, porém, depois deste primeiro impacto, somos confrontados com um arquivo visual deveras intrigante. Assim que se abre o livro, a segunda página devolve-nos uma imagem saturada, a cores, de uma jovem Brigitte Bardot que nos olha nos olhos, e permite reconhecer de imediato códigos visuais do passado. Estamos perante o que parece ser a capa de uma revista popular vintage. Avançamos um pouco mais, e as páginas seguintes revelam uma série de imagens fotográficas organizadas em vinhetas, numa grelha que nos é vagamente familiar. Parece ser uma fotonovela, mas o título corrige essa primeira percepção: trata-se antes de uma fotonovela fílmica. De que filme? As coisas tornam-se verdadeiramente mais confusas quando procuramos descobrir. Numa página, Ingrid Bergman, noutra, Jean-Paul Belmondo; de repente Rita Hayworth, Tippi Hedren, Marcello Mastroianni, todos parecem fazer parte do mesmo espaço ficcional.
Adensa-se a suspeita de que o livro nos ludibria com particular astúcia. Embora se consigam identificar muitos dos actores, filmes e personagens ali presentes – e há certamente uma interessante dimensão lúdica nesse reconhecimento –, é virtualmente impossível perceber qual o filme concreto que ali se está a contar. Felizmente, o próprio livro oferece a chave interpretativa. Na verdade, Une fille comme toi resulta de um gesto particularmente criativo de reescrita, através do qual se radicaliza e reavalia a prática mediática esquecida da fotonovela fílmica. Partindo do escrutínio da sua própria colecção particular, com centenas destas revistas foto-ilustradas, o autor do livro, Jan Baetens, seleccionou e recombinou cerca de 300 imagens previamente publicadas (de diferentes filmes e géneros) logrando criar uma história cinematográfica que nunca existiu, mas que é, no entanto, estranhamente familiar. Explorando produtivamente a tensão ente artifício e autenticidade, Une fille comme toi é um exercício ousado que, por um lado, destabiliza fortemente a trama através da combinação de cenas originalmente não relacionadas e, por outro, faz com que o conceito de narrativa, ainda que revolvido humoristicamente, permaneça inesperadamente estável e funcional.
Um dos aspectos mais curiosos da leitura deste livro é que a história ficcional narrada através dos múltiplos painéis fotográficos é pontualmente interrompida pela introdução de outro tipo de elementos editoriais, ora mais sérios, ora mais recreativos. Estas intermissões paratextuais incluem, entre outras: referências a trabalhos anteriores de Jan Baetens, recensões e críticas a outros livros publicados pela editora JBE, uma entrevista ao autor-celebridade onde se reflecte sobre o futuro da fotonovela fílmica na era digital, ou uma destacável imagem pin-up de Gina Lollobrigida nas páginas centrais.
Nestas múltiplas leituras, o livro dialoga habilmente com os códigos da cultura popular de fãs, umas vezes para os reforçar, outras para os contestar. Deste modo, Une fille comme toi é uma publicação deliberadamente híbrida, cuja força autoral se consolida numa montagem original de forte pendor artístico (recorde-se que Jan Baetens é igualmente um reputado e premiado poeta). Se, por um lado, o livro examina criticamente, e a partir do presente, a materialidade e a linguagem de um género editorial praticamente extinto, por outro lado, ele permite também lançar uma ampla e lúcida reflexão sobre mimetismos sociais e representações de género gerados a partir da cultura visual. Conduz, em última análise, à ideia limite de que o cinema conta constantemente as mesmas histórias, e de que o leitor não está simplesmente a ler um filme; está antes a navegar num vasto e resistente imaginário cultural.
Por tudo isto, Une fille comme toi, propõe um entendimento do fílmico (aqui o fílmico da fotonovela) que actualiza e expande a formulação inicial de Roland Barthes, segundo a qual o fotograma não é apenas da ordem da amostra, mas é sobretudo uma citação, com tudo o que ela tem de paródico e de disseminador. A forma como Jan Baetens maneja as suas imagens-citação e as investe de um terceiro sentido através da relação intertextual traçada com outros códigos e elementos demonstra isso mesmo, colocando em evidência como, neste contexto editorial e artístico, o fílmico se situa e reinventa muito para além do fotograma, criando o tal outro texto.
Se estas características são já suficientes para fazer de Une fille comme toi uma obra de leitura rara e estimulante, o seu interesse sai ainda mais reforçado quando nos apercebemos que este livro é também uma espécie de revisitação. Jan Baetens é simultaneamente um reconhecido professor e académico belga na área de estudos culturais e literários tendo dedicado grande parte do seu percurso de investigação aos chamados géneros menores: banda-desenhada, fotonovela, novelização e, mais recentemente fotonovela fílmica. Neste enquadramento, o seu último livro sobre o tema, publicado em 2019, intitula-se precisamente The Film Photonovel: A Cultural History of Forgotten Adaptations e configura uma leitura académica bastante diferente de Une fille comme toi, embora igualmente apetecível.[4] Esta é a segunda obra na qual gostaria de me focar, pois ela oferece um precioso contributo para os estudos de cultura visual ao aprofundar, com grande sofisticação e aparato teórico, a história deste meio híbrido há muito esquecido.
As fotonovelas fílmicas, se as quisermos descrever brevemente, são um tipo específico de revista no qual se recria uma história cinematográfica pré-existente por meio da combinação de elementos fotográficos (normalmente stills ou fotografias de cena) e palavras (legendas ou balões de diálogo justapostos). Apesar da popularidade e apreciável impacto que granjearam nas décadas de 1950 e 1960, as fotonovelas fílmicas têm uma história complexa que, por diferentes razões – frágil materialidade, natureza fragmentada e informal, pequena tiragem, ausência de valorização e reconhecimento cultural, falta de representação sistemática em colecções de museus, arquivos e bibliotecas, catalogação ambígua – foi tragicamente votada ao esquecimento. Trazer à luz os contornos dessa história tão necessária quanto difícil de recuperar é, pois, um dos primeiros méritos deste trabalho de investigação. Além disso, o livro tem outra grande virtude: a de escrever a história das fotonovelas fílmicas não apenas através do seu enquadramento crítico nas economias e nas instituições (no sentido amplo do termo) onde elas surgiram e operaram, mas também por via das relações decisivas que elas estabelecem com diferentes filmes, géneros literários e formatos mediáticos afins. Mesmo para audiências consideravelmente familiarizadas com o campo dos estudos word & image, esta é uma investigação cultural inédita e bem documentada, com a qual há muito que aprender.
Em primeiro lugar, o estudo de Baetens permite caracterizar a fotonovela fílmica como uma prática popular bastante limitada no tempo (a sua duração é curta, cingindo-se sobretudo aos anos de 1950 e 1960) e localizada no espaço (na Europa os focos principais são a França e a Itália, sendo que o fenómeno atinge uma expressão muito significativa em vários países da América Latina). Em termos históricos e intermediais, o livro realça a fotonovela fílmica como um género particularmente engenhoso que soube apropriar e reinventar elementos de tipologias editoriais anteriores, nomeadamente a banda desenhada, as novelas ilustradas, as novelizações de filmes e, naturalmente, as fotonovelas (das quais as fotonovelas fílmicas tomaram de empréstimo o tradicional layout em quadrícula, bem como o exagero melodramático das histórias narradas). Para além de apontar estas afinidades, a obra sublinha outros aspectos um tanto mais imprevisíveis, identificando e desfazendo equívocos comuns. Clarifica, por exemplo, porque é que as fotonovelas fílmicas não são exactamente fotonovelas e devem ser consideradas de forma autónoma. Contrastando com estas últimas, as fotonovelas fílmicas não produziam de raiz as imagens fotográficas que manejavam; em vez disso, elas recorreram a materiais fotográficos pré-existentes, como é o caso das fotografias de cena ou dos glamorosos stills de filmes, alimentando e reforçando a crescente cultura das celebridades nesses anos. Além disso, as fotonovelas fílmicas eram frequentemente publicadas como histórias completas (e não em fascículos) recorrendo a uma voz editorial estilisticamente bem definida, ainda que na maior parte dos casos anónima. Curiosamente, também atraíam públicos diferentes. Um aspecto notável que o livro destaca é que as fotonovelas fílmicas tinham uma percentagem significativa de leitores do sexo masculino e, mesmo que fossem generalizadamente desprezadas como más variações de bom cinema, elas eram consumidas – pelas histórias, fotos e materiais paratextuais – não apenas em contexto popular mas também em circuitos educados e cinéfilos.
Através de diferentes exemplos, amplificados pela leitura eloquente das imagens e pela rigorosa análise das sequências visuais, Baetens salienta ainda como neste medium especialmente fotográfico, as imagens ocupavam, afinal, uma posição subordinada em relação às palavras e aos textos. Por tudo isto, e para além do seu estilo fluído e elegante, The Film Photonovel revela-se uma leitura muito cativante em especial pela permanente novidade das suas conclusões, resultantes da sofisticada análise cultural, semiológica, material e narratológica, que Baetens faz deste prolífico meio editorial.
Regressando à primeira publicação que aqui referimos, o que é interessante verificar quando olhamos para os dois livros de Baetens lado a lado, é que muitos dos aspectos aprofundados e revelados em The Film Photonovel foram formidavelmente reinterpretados e reconfigurados nas páginas mais artísticas de Une fille comme toi. Nelas encontramos os elementos fundamentais que caracterizam a linguagem das fotonovelas fílmicas no seu sentido mais clássico – a grelha 3×2, o narrador com um estilo editorial bem definido, as poses dos retratos de celebridades, o uso de imagens repetidas na mesma sequência, a inclusão de imagens fotográficas de baixa qualidade, a presença de elementos paratextuais como entrevistas, críticas, artigos curtos, secções cor-de-rosa, anúncios e posters – todos eles meticulosamente reactivados e dialogantes com o presente.
Apesar destes dois trabalhos fazerem da fotonovela fílmica o seu tema central, trabalham-na em termos profundamente distintos. A leitura paralela destes livros faz-se numa lógica de díptico: obras independentes entre si cuja articulação compõe um sentido mais amplo que as reforça e transcende. Para além disso, esta leitura revela também como, neste caso e de forma muito eficiente, os dois discursos (o artístico e o académico) se interligam, alimentam e complementam. Une fille comme toi materializa uma variação criativa e contemporânea de um campo cultural anteriormente examinado por Baetens, que acaba por fazer mais do que isso. Por um lado, demonstra como, na cultura visual, grandes ideias podem ser comunicadas em formas e dialectos que não se limitam à palavra escrita; por outro lado, que é preciso um espírito maior para colocar de parte as certezas do discurso académico e abraçar um território mais subjectivo, movendo-se com o mesmo à-vontade em ambos. Na senda do que sugeriu o teórico Vilém Flusser, «duas frases distintas correspondem a dois pensamentos distintos».[5] Também neste exercício de leitura paralela, os trabalhos de Baetens demostram bem que pensamos diferentemente aquilo que vemos, e articulamos, de forma diferente.
Por fim, a leitura dupla de Une fille comme toi e The Film Photonovel torna manifesto que o gesto criativo de desconstrução (e, neste caso, de recomposição) é tanto mais produtivo e relevante quanto maior conhecimento exista acerca da estrutura inicial daquilo que se desmonta. Creio que, juntos, estes dois livros sobre a fotonovela fílmica tornam evidente esta ideia: o profundo entendimento de um tema muito contribui para que a sua desarticulação não resulte simplesmente em fragmentação vazia, mas seja capaz de redefinir novos espaços de reflexão e experiência, que o leitor possa habitar e descobrir.
[1] Roland Barthes, «O terceiro sentido», in O óbvio e o obtuso. Lisboa, Edições 70, 2009 (orig. 1970), p. 63.
[2] Roland Barthes, «O terceiro sentido», in O óbvio e o obtuso. Lisboa, Edições 70, 2009 (orig. 1970), p. 63–64.
[3] Jan Baetens. Une fille comme toi. Ciné-photo-roman. Paris, Jean Boîte Éditions, 2020.
[4] Jan Baetens. The Film Photonovel: A Cultural History of Forgotten Adaptations. Austin, University of Texas Press, 2019.
[5] Vilém Flusser. Writings. Minneapolis: Univeristy of Minnesota Press, 2002, p. 192.
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O fílmico, afirma Roland Barthes num dos seus textos mais referenciais, «muito paradoxalmente, não pode ser captado no filme ‘em situação’, ‘em movimento’, ‘ao natural’, mas apenas, ainda, nesse artefacto maior que é o fotograma».[1] Se, por um lado, o fotograma aparenta ser da ordem da ilustração, do extracto, da amostra, ou da redução da obra fílmica pela imobilização, por outro lado, Barthes reconhece no fotograma uma amplitude semântica única, advogando que este deve ser entendido para além da sua fixidez e restrição temporal.
O seu argumento é o de que o fílmico que no fotograma está contido não tem que ver com o movimento, ou falta dele. O fílmico do fotograma está antes num terceiro sentido que dele emerge, para além do sentido óbvio ou simbólico, e radica na capacidade de activar um importante desdobramento, nem sempre lógico, no qual filme e fotograma não se ofuscam entre si mas estabelecem uma «relação de palimpsesto» em que o fotograma é já fragmento de um outro texto.
No seu elogio do fotograma, Barthes prossegue, porém, referindo a existência de outras artes que de algum modo «continuam» o fotograma, e a história e a diegese, como é o caso das fotonovelas – formas que o autor classifica de «irrisórias, ordinárias, estúpidas, dialógicas da subcultura de consumo».[2] Mais do que expressar o lugar que Barthes parece dedicar à fotonovela na sua hierarquia pessoal de valores artísticos, as suas palavras são aqui especialmente relevantes na medida em que bem exemplificam a forma como a fotonovela, nas suas múltiplas variações, tem sido generalizadamente entendida, e frequentemente depreciada (quando não mesmo ignorada), nos circuitos culturais e académicos desde a sua popularização no final dos anos de 1940.
Se tal falta de atenção pode ser justificável por uma série de razões relativamente consensuais – as fotonovelas tendem a ser graficamente pobres, limitadas nos temas e repetitivas nas formas –, ela não deixa de ser algo redutora. Uma análise aprofundada desta prática foto-textual permitirá compreender que a fotonovela é bem mais do que um subgénero ou uma sucessão de imagens de personagens sedutoras com balões de fala justapostos; ela é um meio (medium) híbrido com autonomia própria, capaz de levantar questões culturais estimulantes às quais, separadamente, as lentes da fotografia, do filme ou da banda desenhada não alcançam dar resposta adequada ou suficiente. Para além disso, a longa ausência de estudos históricos ou teóricos sobre fotonovelas encobriu igualmente outros aspectos, designadamente a existência de variações particulares e igualmente esquecidas deste tipo de edições, como é por exemplo o caso da fotonovela fílmica (cinéphoto-roman), através da qual o cinema encontrou outra via de difusão, nas páginas impressas de revistas populares.
Neste contexto onde muito está ainda por explorar, duas publicações recentes vêm iluminar, com rigor e rasgo criativo, este território tão estereotipado como surpreendente e desconhecido. A primeira delas é um livro-álbum de forte vocação artística, publicado no final de 2020 pela editora francesa JBE – Jean Boîte Éditions.[3] Na sua dimensão objectual, trata-se de um volume de médio-grande formato, fino e graficamente sóbrio, cuja capa branca ostenta a negro um título simples e não particularmente revelador: Une fille comme toi. No seu interior, porém, depois deste primeiro impacto, somos confrontados com um arquivo visual deveras intrigante. Assim que se abre o livro, a segunda página devolve-nos uma imagem saturada, a cores, de uma jovem Brigitte Bardot que nos olha nos olhos, e permite reconhecer de imediato códigos visuais do passado. Estamos perante o que parece ser a capa de uma revista popular vintage. Avançamos um pouco mais, e as páginas seguintes revelam uma série de imagens fotográficas organizadas em vinhetas, numa grelha que nos é vagamente familiar. Parece ser uma fotonovela, mas o título corrige essa primeira percepção: trata-se antes de uma fotonovela fílmica. De que filme? As coisas tornam-se verdadeiramente mais confusas quando procuramos descobrir. Numa página, Ingrid Bergman, noutra, Jean-Paul Belmondo; de repente Rita Hayworth, Tippi Hedren, Marcello Mastroianni, todos parecem fazer parte do mesmo espaço ficcional.
Adensa-se a suspeita de que o livro nos ludibria com particular astúcia. Embora se consigam identificar muitos dos actores, filmes e personagens ali presentes – e há certamente uma interessante dimensão lúdica nesse reconhecimento –, é virtualmente impossível perceber qual o filme concreto que ali se está a contar. Felizmente, o próprio livro oferece a chave interpretativa. Na verdade, Une fille comme toi resulta de um gesto particularmente criativo de reescrita, através do qual se radicaliza e reavalia a prática mediática esquecida da fotonovela fílmica. Partindo do escrutínio da sua própria colecção particular, com centenas destas revistas foto-ilustradas, o autor do livro, Jan Baetens, seleccionou e recombinou cerca de 300 imagens previamente publicadas (de diferentes filmes e géneros) logrando criar uma história cinematográfica que nunca existiu, mas que é, no entanto, estranhamente familiar. Explorando produtivamente a tensão ente artifício e autenticidade, Une fille comme toi é um exercício ousado que, por um lado, destabiliza fortemente a trama através da combinação de cenas originalmente não relacionadas e, por outro, faz com que o conceito de narrativa, ainda que revolvido humoristicamente, permaneça inesperadamente estável e funcional.
Um dos aspectos mais curiosos da leitura deste livro é que a história ficcional narrada através dos múltiplos painéis fotográficos é pontualmente interrompida pela introdução de outro tipo de elementos editoriais, ora mais sérios, ora mais recreativos. Estas intermissões paratextuais incluem, entre outras: referências a trabalhos anteriores de Jan Baetens, recensões e críticas a outros livros publicados pela editora JBE, uma entrevista ao autor-celebridade onde se reflecte sobre o futuro da fotonovela fílmica na era digital, ou uma destacável imagem pin-up de Gina Lollobrigida nas páginas centrais.
Nestas múltiplas leituras, o livro dialoga habilmente com os códigos da cultura popular de fãs, umas vezes para os reforçar, outras para os contestar. Deste modo, Une fille comme toi é uma publicação deliberadamente híbrida, cuja força autoral se consolida numa montagem original de forte pendor artístico (recorde-se que Jan Baetens é igualmente um reputado e premiado poeta). Se, por um lado, o livro examina criticamente, e a partir do presente, a materialidade e a linguagem de um género editorial praticamente extinto, por outro lado, ele permite também lançar uma ampla e lúcida reflexão sobre mimetismos sociais e representações de género gerados a partir da cultura visual. Conduz, em última análise, à ideia limite de que o cinema conta constantemente as mesmas histórias, e de que o leitor não está simplesmente a ler um filme; está antes a navegar num vasto e resistente imaginário cultural.
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
Avenida Rodrigues de Freitas, 265
4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020