Rosa Benitez Andrés
Entre a experiência, o espectáculo e as imagens precárias
Não vou contar a visita. Tentei, mas é avassalador. Ocupa, de imediato, espaço a mais, não pode ser contida nos limites de uns quantos parágrafos.
Calais
Emannuel Carrère, 2016
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Outros, emoções e representação
Num texto recente intitulado La nueva lucha de clases. Los refugiados y el terror, o filósofo esloveno Slavoj Žižek afirmou que, no actual cenário de fluxos migratórios e conflitos associados a esses movimentos, não nos podemos deixar levar pelos sentimentos ou emoções e devemos começar a actuar de forma racional: «Deveríamos cortar o vínculo entre refugiados e empatia humanitária e deixar de fundamentar a nossa ajuda na compaixão perante o seu sofrimento».[1] Pela sua parte, e quando questionada sobre o contexto da crise migratória das últimas décadas, Marion Maréchal-Le Pen, deputada francesa, sobrinha da presidente da Frente Nacional Francesa – Marine Le Pen – e jovem promessa deste partido político, defendeu, numa entrevista em Abril de 2017, um argumento, à primeira vista, em concordância com o do filósofo: «Hoje, na França, e também na Europa, deixamo-nos levar muito pelas emoções. Julgo que não seja a melhor maneira de responder nem às necessidades destas pessoas nos seus países, nem às dos franceses aqui».[2]
Poderia parecer que a abordagem de Marion Le Pen fosse susceptível de contar com um amplo consenso social porque o ódio, o medo, a frustração ou a raiva não são, sem dúvida, a melhor resposta para um grupo de refugiados do Sudão do Sul que escapa do confronto entre o governo e os rebeldes do vice-presidente, e as suas respectivas etnias, dinka e nuer. O problema é que Le Pen não está a referir-se a essas emoções; em vez disso, pensa, sobretudo, em outras como o amor, o carinho, a empatia, a confiança, a coragem, a segurança, etc. Para esta dirigente e, em princípio, para a maior parte dos seus eleitores, estas não seriam as emoções mais adequadas nem a postura mais conveniente perante esse grupo de refugiados do Sudão do Sul; uma comunidade que, neste caso específico, nem sequer teria excessiva importância porque não afecta a França, dado que fica junto ao Quénia, Somália ou Uganda. Este último país está a demonstrar ter uma política de acolhimento quase inimaginável no resto do mundo.
Por este mesmo motivo, o que fica claro é que o argumento de Žižek não se enquadra, de maneira alguma, com as teses xenófobas do partido francês e encaixa-se, sobretudo, num quadro de acção ética que transcende, ou melhor dizendo, procura fundamentar a acção individual ou colectiva e institucionalizada. A sua proposta completa defende que «deveríamos cortar o vínculo entre os refugiados e a empatia humanitária e deixar de fundamentar a nossa ajuda na compaixão perante o seu sofrimento. Em vez disso, deveríamos ajudá-los porque é nosso dever ético fazê-lo porque não podemos deixar de o fazer se queremos continuar a ser pessoas decentes».[3] Ou seja, a solução para o contexto de crise humanitária que uma parte importante da população mundial está a viver tem de passar pelo dever ou lei moral e não apenas por medidas políticas – seja no sentido que for – como se depreende das palavras de Le Pen.
Consiste, então, no velho problema detectado por Kant Sobre a discrepância entre a moral e a política, no célebre tratado A paz perpétua. Estamos perante a desconformidade entre os direitos e os deveres – que se encontram no campo da moralidade —, e os factos da vida, que é o campo administrado pela política e a que esta aspira governar.[4] Ética versus ontologia. Kant tentou unificar as duas esferas numa colaboração mútua que evitasse o possível confronto: «no caso de se unirem, resultaria absurdo o conceito de contrário e não se poderia considerar como um problema a resolução do conflito entre moral e política»,[5] no entanto, essa ligação parece cada dia mais afastada. Aqui, as emoções voltam a atingir protagonismo e, contudo, estas também não deveriam ser um impedimento para a formação de posições políticas ou éticas.[6] Embora a imagem cultural da nossa sociedade se tenha formado com base numa visão racionalista como motor do verdadeiro progresso, muitas são as análises que há algum tempo reivindicam o papel positivo das emoções nesse desenvolvimento e não apenas como espaço de acção relegado ao âmbito do privado e alheio à razão. Como Eva Illouz assinalou ao falar da energia das emoções como impulsionadoras de um acto:
Longe de serem pré-sociais ou pré-culturais, as emoções são significados culturais e relações sociais fundidos de maneira inseparável e é essa fusão o que lhes confere a capacidade de transmitir energia à acção. Aquilo que faz com que a emoção tenha essa “energia” é que ela sempre diz respeito ao eu e à relação do outro com outros situados culturalmente.[7]
Desde este ponto de vista, como causa, as emoções não representam um obstáculo nem para a acção política, nem para a moral, uma vez que fazem parte, simultaneamente, da esfera pública e geral. Isto implica que se possam dirigir tanto num sentido chauvinista (Le Pen), como humanitário (Žižek). O obstáculo, portanto, é que, actualmente, no âmbito dos direitos e dos deveres, surgiu outro concorrente que consiste no crescente espaço de relações e inter-relações humanas que parecem não estar sujeitas à avaliação moral. São vínculos susceptíveis de serem julgados unicamente pela sua eficiência, nos quais é totalmente indiferente o tipo de relação que estabeleço com uma pessoa, apenas importa o ganho que obterei.
As consequências directas de um cenário como este que se acabou de resumir são as seguintes: as obrigações morais que estamos dispostos a admitir são cada vez menores e as acções pelas quais nos responsabilizamos estão mais restringidas.[8] É como se, nas palavras de Bauman e Donskins, tivéssemos sido inoculados com uma espécie de vírus da “cegueira moral” que nos impede de assumir o sofrimento alheio:
É a cegueira moral – escolhida, auto-imposta ou aceite com fatalidade – numa época que, mais do que qualquer outra coisa, precisa de rapidez e agudeza na apreensão e nas emoções. Com a finalidade de recuperar a nossa capacidade perceptiva em tempos obscuros, é necessário devolver tanto a dignidade como também a ideia da essencial incomensurabilidade dos seres humanos, não só aos grandes do mundo, mas também aos extras da multidão, ao indivíduo estatístico, às unidades estatísticas, ao vulgo, ao eleitorado, ao homem da rua, ao cidadão comum, isto é, a todos esses conceitos enganadores.[9]
As cada vez mais difundidas abstracção e espectacularização das histórias e das vidas dos indivíduos abrem caminho para decretar uma nova fronteira, uma divisão extrema entre o nós e o vós; o que a psicologia social denomina como favoritismo do endogrupo sobre o exogrupo. Esta divisão não deveria implicar problemas maiores – não seria mais do que outra forma de categorização social – se não fosse porque esse vós que, como dissemos, já só é considerado no que diz respeito à rentabilidade, pode acabar por ser excluído do nosso âmbito de moralidade. É mais simples livrar-se da responsabilidade sobre o próximo, quando o relego a um espaço completamente indiferente àquele dos meus deveres. Consiste na mesma chamada de atenção que fez Judith Butler, seguindo a mesma linha de Levinas, a respeito da nossa interdependência como seres humanos e do papel que desempenham nesse reconhecimento os imaginários culturais: «as formas dominantes de representação podem e devem ser destruídas para que algo sobre a precariedade da vida possa ser apreendido».[10] Somente desta forma poderão ser combatidos esses enquadramentos que não nos permitem perceber determinados sujeitos como seres humanos e que, directamente, os excluem da vida pública: «O que está privado de rosto, ou cujo rosto nos é apresentado como o símbolo do mal, autoriza a tornarmo-nos insensíveis perante as vidas que eliminamos e cujo luto é, indefinidamente, adiado».[11]
Deste modo, quando os migrantes são equiparados a potenciais terroristas, sendo colocados nesse espaço crescente de irresponsabilidade moral, sentimo-nos quase aliviados por sermos dispensados do nosso dever, ao deixar estes indivíduos fora do seu campo de acção.[12] Este é o perigo da despersonalização e da desumanização: são excluídos da categoria de legítimos detentores de direitos humanos: «a figura – o refugiado – que deveria ter personificado por excelência os direitos do homem, marca, pelo contrário, a crise radical deste conceito».[13] Se continuarmos centrados, portanto, no contexto da actual crise migratória, parece que o cenário que se avizinha é ainda mais degradante do que aquele que anunciara Arendt na década de 1940:
Se começarmos a dizer a verdade, isto é, que somos apenas judeus, estaríamos expostos, unicamente, ao destino da humanidade, não nos protegeria nenhuma lei específica nem nenhuma convenção política, não seríamos mais do que seres humanos. Apenas consigo imaginar uma abordagem mais perigosa, pois o facto é que, desde há muito tempo, vivemos num mundo onde já não existem mais meros seres humanos. A sociedade descobriu na discriminação um instrumento letal para matar sem derramamento de sangue. Passaportes, certidões de nascimento e, às vezes, até mesmo a declaração de rendimentos já não são documentos formais, mas sim uma questão de diferenciação social.[14]
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Actualmente, nenhum estado de acolhimento assume a cidadania destas pessoas, mas o conjunto da sociedade civil também não reconhece o seu inalienável direito à vida. É evidente que assumir responsabilidades sem limites e sem excepções pelo bem do outro é uma tarefa impossível, quase sagrada, que ultrapassa as nossas capacidades e virtudes. No entanto, esses limites, essas fronteiras, não podem ser aplicados às pessoas susceptíveis de entrar no nosso âmbito de obrigação moral. A realidade impõe-nos a incapacidade de chegar a todos, mas não a obrigação de diferenciar entre nós e eles. Além disso, não pode ser ignorado o facto de que a diferença entre esse eles e o nós não é territorial, isto é, horizontal, mas sim vertical ou social.
Em direção a um sentimento de hospitalidade[15]
Por isso, nesse mesmo tratado no qual Kant se referia à discrepância entre a ética e a política – um tratado jurídico – não o esqueçamos, o filósofo condiciona a existência de uma paz universal, de uma convivência real, à existência de uma hospitalidade universal. No terceiro artigo definitivo do programa, Kant propõe um direito de hospitalidade como condição necessária para a paz entre as nações:
Hospitalidade (Wirthbarkeit) aqui significa o direito de um estrangeiro de não ser tratado de forma hostil pelo facto de ter chegado ao território de outro. Este pode rejeitar o estrangeiro, se isso puder ser feito sem a sua ruína, mas, enquanto o estrangeiro se comportar amigavelmente no seu lugar, não poderá ser combatido de forma hostil. Não existe nenhum direito de hóspede no qual se possa basear esta exigência [...] mas antes um direito de visita, direito de se apresentar à sociedade que todos os homens têm em virtude do direito de propriedade em comum da superfície da Terra, [...] tendo de se suportar uns junto dos outros, e ninguém tendo originariamente mais direito do que outro a estar num determinado lugar da Terra.[16]
Para o filósofo alemão, a hospitalidade está situada no campo da ética, das normas legítimas, mas sempre condicionada ao “comportamento amigável” do estrangeiro. Um facto que, poder-se-ia pensar, acaba com a sua condição de estrangeiro. Ou seja, deparamo-nos com a condição que esse comportamento amigável é, no fundo, um requisito político que exige a sua igualização, a eliminação do traço do “outro” e de se tornar “um”. Além disso, o estrangeiro tem um direito de visita e não de residência devido ao legítimo “direito de propriedade em comum da superfície da Terra”. Uma hospitalidade, então, condicionada, que será criticada por Derrida ao entendê-la como um acto de violência contra o outro: comportar-se amigavelmente é assimilar-se. Deste modo, o filósofo francês insistirá na necessidade de não se limitar ao plano jurídico e chegar ao plano ético, que para ele é hospitaleiro por si mesmo:
A hospitalidade é cultura em si própria e não simplesmente uma ética entre as outras. Na medida em que diz respeito ao ethos, ou seja, à morada, à nossa casa, ao lugar de residência familiar, dado que é uma forma de nela estar, a maneira de nos relacionar connosco e com os outros, com os outros como nossos ou como estrangeiros, a ética é hospitalidade; a ética é tão minuciosamente coextensiva com a experiência da hospitalidade, seja qual for o modo como se abra ou se a limite. Mas, por este mesmo motivo e porque o ser-se si mesmo na sua própria casa (a própria ipseidade) supõe um acolhimento ou uma inclusão do outro que tentamos possuir, controlar, dominar, segundo diversas modalidades de violência, há uma história da hospitalidade, uma perversão sempre possível d’A lei da hospitalidade (que pode parecer incondicional) e umas leis que a limitam, condicionam ao inscrevê-la num direito.[17]
Desta forma, para Derrida, a hospitalidade é a condição necessária para a ética. Contudo, a hospitalidade perfeita, a hospitalidade total, aquela na qual alguém se entrega inteiramente a outro é uma hospitalidade impossível, chamada de hiperbólica por Derrida. O dever e o direito à hospitalidade encontram-se sempre condicionados a uma norma, ao comportamento amistoso, segundo dizia Kant, ou à apropriação do outro na minha língua, segundo Derrida. Uma hospitalidade que, no fundo, esconde uma perversão, um requisito, uma limitação. Não obstante, esta outra hospitalidade total, incondicional está fora de todas as regras, de todos os limites. A consequência directa deste atributo é o que a torna algo completamente ideal e, desse modo, impossível, uma vez que a hospitalidade completa significa a entrega, a abertura total ao outro. A sua execução é, portanto, inviável.
Perante a inviabilidade de uma e as deficiências de outra, o desafio seria tentar conseguir, de alguma forma, uma situação intermédia entre esta hospitalidade perfeita, impossível, e ideal, e as condições impostas pelo direito ou reciprocidade da compensação porque sem elas a hospitalidade não é mais do que uma utopia, até irresponsável em alguns casos:
Consiste em saber como transformar e aperfeiçoar a Lei, e de saber se este aperfeiçoamento é possível dentro de um espaço histórico que acontece entre a Lei de uma hospitalidade incondicional, oferecida, a priori, a qualquer outro, a todo o recém-chegado, seja ele quem for, e as leis condicionais de um direito à hospitalidade, sem as quais a Lei da hospitalidade incondicional correria o risco de permanecer um desejo piedoso e irresponsável, sem forma nem efectividade, e até mesmo de se perverter a qualquer momento.[18]
Para não perder a possibilidade de encontrar esse espaço intermédio entre o ideal incondicionado e os necessários limites a uma hospitalidade total, necessitamos de alguma coisa que singularize, que vincule a hospitalidade às situações, vivências e contexto. Ou seja, não precisamos só de uma hospitalidade hiperbólica e ideal, nem de uma lei ou de um direito de hospitalidade, mas sim de um sentimento, qualquer coisa apegada à experiência. Temos de usar a parcialidade introduzida pelas restrições, as condições que nos impedem de uma entrega completa, mas, ao mesmo tempo, ter a consciência do carácter desejável que supõe essa outra hospitalidade impossível. Como sugere Domingo Hernández Sánchez (2021), esta é a única forma de estabelecer relações que incluam uma reciprocidade sem recompensa, mas mantendo o carácter de condicionalidade que carrega qualquer sentimento, sempre sujeito à vontade, à intenção. Assim, se a hospitalidade limitada é injusta e a ideal, por sua vez, é impossível, precisamos que a restrição seja introduzida de outra forma. O sentimento de hospitalidade permite condicionar essa situação a um contexto, a uma experiência ou a uma realidade como a que estão a viver centenas de pessoas nas nossas fronteiras. Conhecer a sua circunstância, colocar um rosto no outro, poderia permitir que surgisse esse sentimento de hospitalidade, o qual não consiste numa norma imposta, nem num ideal compassivo. Aqui não há qualquer interesse porque não há recompensa, não se espera um retorno. Sentir-se hospitaleiro não pode restringir-se ao direito ou à acção política. Em vez disso, essa emoção e esse sentimento chegam a transformar-se numa postura ética no sentido Derridiano do termo.
Sobre as imagens singulares
Ao aceitar, então, que entre o ideal inalcançável e a hospitalidade sujeita a condições – essas aporias que acabaram de ser expostas – existe uma hospitalidade real; uma hospitalidade imperfeita que, ainda assim, é mais plausível do que a norma, parece que nos estamos a movimentar no âmbito das emoções e do sentimento de hospitalidade.
Pode haver, assim, um espaço intermédio entre a obrigação da lei moral, o ideal piedoso e a indiferença absoluta. Mas, donde surge esse sentimento, que situações me fazem sentir hospitaleiro, quais são as experiências que particularizam a hospitalidade ideal no sentimento de hospitalidade fora das normas impostas? Sem qualquer dúvida, a resposta estará relacionada com o conhecimento das vivências do hóspede, desse outro ao qual ofereço o meu acolhimento. Quando tenho a possibilidade de individualizar as circunstâncias e a experiência daquele que reivindica a minha hospitalidade e essa solicitação deixa de ser uma abstracção, pode surgir o sentimento e não apenas a obrigação ou a entrega utópica.
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Contudo, a forma como actualmente temos acesso a essas experiências, a maneira de nos relacionarmos com elas e as conhecer, volta a apresentar um paradoxo: todas essas situações, vivências e histórias concretas chegam até nós transformadas em imagens muito pouco particulares, quase que esvaziadas de sentido. A cultura visual contemporânea fez com que, entre outras coisas, as imagens perdessem a sua capacidade de representação.
Na cultura visual digital, mais do que os próprios conteúdos e as mensagens emitidas, ganham mais relevância os usos, dirigidos, em última instância, a sustentar e a multiplicar as relações comunicativas e as práticas testemunhais. As imagens não são um elemento passivo de suporte à representação, mas sim uma forma activa de intersubjectividade com capacidade performativa e em circulação constante nas redes digitais de comunicação.[19]
As imagens digitais e o seu novo estatuto na Internet impuseram uma forma completamente diferente de conceber o mundo, de sentir o espaço-tempo e de nos relacionarmos com e por meio delas. A democratização na produção, edição e consumo de imagens digitais transmutou completamente a nossa experiência perceptiva e os modelos de conhecimento, para além das formas de subjectivação e vinculação social contemporâneas.
Não deixa de ser curioso, neste sentido, que a circulação restrita de pessoas coexista com uma desregulamentação completa na circulação de mercadorias e que tudo isto seja captado, exibido e contado através de um fluxo constante e também livre de imagens. São as virtudes da mundialização. Assim, a ubiquidade dos dispositivos de registo e a divulgação dos seus produtos contrasta, notavelmente, com as limitações impostas a esse «direito de propriedade em comum da superfície da Terra» que referiu Kant. Esta circulação indiscriminada de imagens leva às seguintes questões: «Se as imagens podem circular e ser partilhadas, porque não o poderia ser tudo o resto? [...] Se o copyright [direitos de autor] pode ser eludido e contestado, porque não poderia acontecer o mesmo com a propriedade privada?». [20]Actualmente imaginamos a vida dos refugiados uma vez que chegam até nós quantidades imensas de imagens que retratam o seu sofrimento; uma realidade material – os muros, as fronteiras e as condições de vida dos migrantes – que nos é apresentada de forma estetizada e privada da sua singularidade, dentro de um fluxo incessante de representações uniformes, isto é, sem barreiras:
A proclamada abolição dos muros no mundo globalizado fez parte de um processo de aperfeiçoamento e estetização das formas de separação. As imagens aéreas captadas por um drone de refugiados na fronteira da Hungria mostraram a contradição entre a visualidade globalizada e a realidade material da catástrofe humana, representada a uma distância tolerável, satelitizada e intensamente verticalizada.[21]
O problema consiste em que, se por um lado, as fotografias ou vídeos permitem aproximarmo-nos – não conhecer – à realidade dos refugiados e migrantes, por outro lado, essa mesma realidade fica inserida num fluxo contínuo de imagens que nos chegam de forma indiferenciada, descontextualizada e num espaço expositivo idêntico. Assim, podemos passar do corpo de Alan numa praia na Turquia (Fig. 1) para o último outfit [indumentária] das Kardashian (Fig. 2). Deste modo, o potencial informativo dessas imagens fica diluído num continuum de rostos, paisagens e receitas culinárias que aceleram os nossos tempos de percepção e reflexão. A cultura visual torna-se completamente homogénea e incapaz de qualquer particularização. A dor dos refugiados em trânsito é banalizada não só entre as imagens das “férias de celebridades na miséria dos outros”, mas também entre a quantidade imensa de fotografias e vídeos que nos oferecem tanto os jornalistas como qualquer utilizador de um dispositivo móvel. As imagens já não são vistas, mas sim partilhadas.
Como Rancière salientou, a banalização da violência por meio da reprodução técnica não é o resultado de um excesso de imagens, apesar de também acontecer, mas é produzida pela despersonalização e descontextualização dessas imagens:
Vemos demasiados corpos sem nome, demasiados corpos incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos, demasiados corpos que são o objecto da palavra sem terem eles próprios a palavra. O sistema de informação não funciona pelo excesso de imagens; funciona ao seleccionar seres falantes e racionais, capazes de “decifrar” o fluxo da informação que concerne a multidões anónimas. A política específica dessas imagens consiste em nos mostrar que nem todos são capazes de ver e falar. Esta é a lição claramente confirmada por aqueles que tencionam criticar a enchente de imagens na televisão.[22]
Nenhum grande jornal espanhol dedicou tempo a identificar os mortos na praia de Tarajal, em 2014. Uma tarefa informativa que deixaram nas mãos do género videográfico documentário, com filmes como Tarajal. Desmantelando a impunidade na fronteira sul. Nas palavras do linguista Mario Montalbetti, poderíamos dizer que o jornalismo substitui «o acontecimento pela notícia, de tal forma que agora o que acontece são notícias; mas estas já indistinguíveis dos eventos, também nos são apresentadas como um fluxo caótico incompreensível, cujo significado unicamente é apreendido se for dividido, seleccionado e domesticado, emitindo-se».[23] Os meios de comunicação seleccionam e ordenam o horror, de tal forma que as imagens acabam por funcionar como uma simples ilustração. Portanto, o que vemos não é tanto o horror, mas sim o comentário de especialistas, políticos ou jornalistas sobre o horror. Não apenas isso, mas também a distribuição massiva dessas glosas na forma de Tweet indignado ou GIF revelador, porque, efectivamente, a circulação de imagens na Internet eliminou grande parte das fronteiras entre a actividade jornalística ou informativa e a de qualquer internauta. Agora, o nosso dia-a-dia é repleto de capturas desfocadas, selfies, montagens e todo o tipo de pós-produções visuais. O mundo do qual nos falam parece já ter pouco a ver com o mundo real.
O que fazemos então? Rejeitamos essas “imagens pobres”, como Hito Steyerl lhes chama, devido à sua precária existência, por não serem a representação exacta de uma realidade inapreensível e por estarem carregadas de uma emotividade totalmente subjectiva?
As imagens pobres são imagens populares, imagens que podem ser feitas e vistas por muitos. Expressam todas as contradições da multidão contemporânea: o seu oportunismo, o seu narcisismo, o desejo por autonomia e criação, a sua inabilidade para se salientarem ou deliberarem, a sua prontidão constante para a transgressão e para uma simultânea submissão. No seu conjunto, as imagens pobres formam um instantâneo fotográfico da condição afectiva da multidão, da sua neurose, medo, bem como da ânsia por intensidade, diversão e distracção.[24]
Obviamente, aqui não estamos a falar em termos de realismo ou não realismo, nem de fidelidade. É antes uma questão do estatuto das imagens, da sua materialidade visto que muitas delas deixaram de ser representações para se converterem em elementos constitutivos do nosso meio, que elas produzem. Para além da sua complexa ontologia,[25] ou da sua referência a um mundo virtual em muitos casos, continuam a ter a possibilidade de comunicar. A proposta, então, com o foco nessas imagens que nos aproximam do outro, é entendê-las como um pequeno fragmento de realidade, vislumbrar algo nelas, apesar da atrocidade que não conseguimos racionalizar. A banalização da realidade que testemunham as imagens que circulam na Internet não é algo inerente à própria imagem, mas sim ao seu uso. O facto de se terem tornado em mais um instrumento de compra e venda, neste caso de valores, dentro do sistema de organização social capitalista, não as invalida como ferramenta gnoseológica e comunicativa. Isto quer dizer que, por exemplo, negar a sua capacidade para nos mostrar um fragmento da dor dos refugiados contribui para homogeneizar essa dor, para torná-la algo abstracto, para relegá-la a um campo de acção pelo qual não sou responsável. São um ponto de contacto, como defende Didi-Huberman,[26] que nos permite particularizar o sofrimento.
Reaparece, então, a necessidade de singularizar, de fugir do que é completo, tanto da hospitalidade ideal quanto da imagem total. Isto é algo que afecta as representações visuais, mas também as verbais.[27] Como já foi dito, a imagem de Alan Kurdi, falecido na praia de Bodrum (Turquia), no dia 2 de Setembro de 2015, perdeu grande parte do seu significado ao se diluir no fluxo de figuras que passam nos nossos ecrãs. Ao mesmo tempo, a sua transformação em ícone, o convertê-la em metonímia de uma realidade tremendamente complexa e conflituosa, contribuiu para a invisibilidade do seu próprio drama. Ou seja, a sobre-exposição de um facto acabou por enterrar a sua própria história. Com Alan também viajavam a sua mãe, Rehan, o seu irmão, Galip, bem como o pai das crianças, o único sobrevivente da família. Esta circunstância ficou completamente silenciada perante o espectáculo visual de uma criança desamparada na imensidão do mar. Neste efeito de criar opacidade da imagem digital baseia-se a peça que o poeta chileno Raúl Zurita apresentou na Bienal de Kochi-Muziris na Índia em 2016. Para The sea of pain (Fig. 2), o poeta inundou a superfície do armazém Aspinwall House, de tal modo que quem quisesse aproximar-se da peça teria de se adentrar na escuridão da água. Aqui não há imagens, apenas um poema distribuído entre as grandes paredes do armazém, dedicado a Galip Kurdi: Don’t you hear me? / In the sea of pain… / Won’t you come back, / Never again, / In the sea of pain?. Neste caso, ao uso reiterado da imagem nos meios de comunicação contrapõe-se a singularidade da palavra poética e da experiência estética.
Esta acção de Zurita apresenta-se como algo muito semelhante ao trabalho que a artista Banu Cennetoglou tem vindo a desenvolver há anos com The List. Consiste numa lista na qual estão recolhidos os dados de migrantes, refugiados e requerentes de asilo político que morreram na tentativa de atravessar as fronteiras da União Europeia, desde 1993. Este registo é elaborado com o apoio da associação UNITED for Intercultural Action. A intervenção de Cennetoglou baseia-se em dar apoio físico e institucional para que o projecto ganhe visibilidade junto da população europeia, quer dizer, com o seu trabalho procura que a morte de todos estes migrantes esteja presente no quotidiano dos cidadãos comunitários. A forma de consegui-lo, ocorre, como dissemos, com a individualização dessas vidas, ao proporcionar-lhes um nome, sexo, idade ou local de nascimento, isto é, um contexto. (Fig. 4) Unicamente com o conhecimento do Outro, esse que, além disso, é visto como ameaça, poderemos reconhecê-lo: «Tudo o que se passa aqui “entre nós” diz respeito a todos, o rosto que o observa, coloca-se no foco da ordem pública, mesmo que EU me afaste dela para procurar com o interlocutor a cumplicidade de uma relação privada e de uma clandestinidade».[28]
A estratégia desta artista, a qual, no entanto, não apresenta este projecto como uma obra de arte, passa por insistir no facto de que a sucessão acelerada de imagens distribuídas pelos meios digitais e redes sociais não é, sem lugar a dúvida, o enquadramento mais adequado para a exigência de um ambiente apreensivo. O acesso generalizado à imagem actualmente é, com toda a certeza, uma falsa particularidade; nunca tantos casos específicos acabaram por se tornar tão homogéneos, iguais e pouco particulares. É a expulsão do distinto que mencionou o filósofo coreano Byung-Chul Han.[29] Por isso, quem sabe se não necessitamos de outro cenário, de um lugar onde não se reproduzam as lógicas da rentabilidade e do consumo neoliberal. Pode ser que seja “o tempo da arte”.[30] Com isto, não nos referimos ao seu tempo como o seu melhor momento, mas sim à necessidade de recuperar os seus ritmos, as suas demoras, a sua “inoperabilidade”.[31] Consiste, sem dúvida alguma, numa ideia muito romântica no sentido pleno da palavra, mas é, talvez, possível que Schiller não estivesse tão enganado e que essa desvinculação da arte em relação a qualquer fim imediato, a sua renúncia a uma intervenção directa na realidade, possa voltar a juntar sensibilidade e espírito, emoção e razão, realidade e dever: «O proveito é o grande ídolo do nosso tempo, ao qual se submetem todas as forças e todos os talentos prestam homenagem. O mérito espiritual da arte não tem valor nesta tosca balança e, privada de todo o incentivo, a arte abandona o barulhento mercado do século».[32] O facto de as televisões mostrarem os refugiados como massas em trânsito não impede a existência de outras possibilidades para a imagem, para a formação de imaginários.
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Arte e sentimento de hospitalidade: uma dimensão estética
Alfredo Jaar, ciente de que «as pessoas perderam totalmente a capacidade de ficarem comovidas»[33] por esse tratamento das imagens, há anos que está a trabalhar na direcção oposta à da anestesia informativa. Desde o seu projecto Lament of the Images (2002), onde reflecte, justamente, sobre a apropriação dos arquivos visuais por parte do poder, até à peça A Hundred Times Nguyen (1994), os conflitos migratórios constituem uma parte importante da sua obra. Nesta última peça (Fig. 5), o artista chileno apresenta vinte e quatro combinações possíveis do retrato quádruplo de uma menina vietnamita refugiada. A sequência de quatro fotografias mostra as variações no gesto da retratada, uma mudança muito subtil, alheia a qualquer consumo acelerado. A imagem comove, mas ao mesmo tempo, convida a reflectir, a analisar o rosto e o gesto da criança, a questionar a sua origem, o contexto e a situação. O recurso à seriação e à permutação que utiliza Jaar contrasta com a presumível individualidade dos milhões de retratos que inundam a Internet. Contudo, essa repetição ou reprodução em série da fotografia com uma variação mínima é o que consegue, por um momento, singularizar a imagem e a realidade que ela resgata.
Singularizar, concretizar e individualizar consiste na mesma ideia que a artista Bouchra Khalili colocou sobre a mesa em peças como The Mapping Journey Project (2008–2011), que consiste na projecção de oito vídeos, nos quais várias pessoas refugiadas traçam as rotas que percorreram até à sua actual localização fixa, e contam de forma pessoal, mas ao mesmo tempo asséptica, como foram as suas viagens (Fig. 6). Esta instalação permite que os visitantes assimilem as distâncias e as condições nas quais se deslocam milhões de pessoas. Consiste também num projecto que integrou a programação do MoMa de Nova Iorque, no ciclo Citizens and Borders e que, portanto, está longe de ser uma proposta minoritária ou de pequeno público. Certamente, e apesar da urgência actual, este não é um “tema” novo para a arte. Assim o assinalou Rogelio López Cuenca ao basear-se num excerto do Canto VI da Odisseia para iniciar o seu projecto videográfico com o mesmo título (2005).
Odisseu – Pobre de mim! A que terra cheguei? Quais os homens que a habitam?
São, porventura, selvagens violentos, que as leis desconheçam,
ou de estrangeiros amigos, e afeitos ao culto dos deuses? (…)
Nausica – Ora detende-vos, servas. Fugis só à vista de um homem?
Ou presumis que ele vem para nós com malévolo intento?
Nunca nasceu nenhum homem, que espere alcançar longa vida,
nem há-de haver, que chegasse aos Feácios e à terra em que moram,
para algum dano causar-lhes, pois todos são caros aos deuses.
Nós a departe moramos de todos, no mar cheio de ondas,
últimos seres humanos, sem termos contato com outros.
Este, porém, que nos chega, é estrangeiro infeliz e vagante, de quem
nos cumpre cuidar. Vêm de Zeus poderoso os mendigos
e os estrangeiros; embora pequenas, são gratas as dádivas.
Ora, criadas, ao hóspede dai alimento e bebida,
e ide banhá-lo no rio, em lugar protegido dos ventos.[34]
O artista espanhol reactualiza a disputa entre a hostilidade e a hospitalidade para adaptá-la aos tempos que correm. Esta oposição, traduz-se agora numa mudança da hospitalidade para a indústria hoteleira. O acolhimento é transformado numa mercadoria (Fig. 7). Neste sentido, é notável que, perante a crise humanitária consequência dos recentes conflitos migratórios, apenas se ouça a palavra acolhimento, porque a hospitalidade é relegada à esfera económica. Já nem sequer se oferece, há unicamente uma relação de compra e venda. Daí surge a urgência de um sentimento de hospitalidade, porque, como questionou Estrella de Diego,[35] se é possível ser viajante em tempos da democratização e massificação do turismo, talvez também nos devamos perguntar se é possível ser refugiado em tempos de industrialização da hospitalidade.
Este não é o único trabalho de Rogelio López Cuenca sobre migrações, fronteiras ou a representação do “outro”. Existem outros como El paraíso es de los extraños, projecto em execução desde 1999 a respeito da imagem do Islão no Ocidente. Também Walls, uma vídeo-instalação de 2006 que apresenta um enquadramento muito semelhante. Consiste num vídeo organizado com base num texto duplo. Por um lado, a projecção das gravações das câmaras de vigilância da vedação de Melilla e, abaixo delas, como se fossem legendas das imagens, os dados de um canal de televisão dedicado à informação financeira. Por outro lado, o ecrã contíguo mostra o trânsito dos migrantes mexicanos para os EUA, comparando-o com o dos subsarianos que atravessam a fronteira de Espanha com África e enquadrando o percurso com o poema Muros de Kavafis (Fig. 8). Aqui o contexto é importante, o artista tenta mostrá-lo em toda a sua complexidade, ao indagar algumas das suas causas – principalmente económicas – que desencadeiam esses “fluxos”. A precariedade e a má qualidade das imagens fazem-nos lembrar, também, a força e o potencial dos quais se podem revestir as “imagens pobres”, em contraste com a perfeição dos píxeis do iPhone mais recente.
Outros artistas, como Ai Weiwei, em vez de centrarem a sua produção mais recente na reflexão sobre as contradições entre a hospitalidade e os movimentos de pessoas, optaram por “dar visibilidade” ao drama dos refugiados e, por vezes, instrumentalizá-lo. Weiwei, como “artista-activista”, apresentou, em Praga, a peça A lei da viagem (2017), formada por uma balsa de 70 metros com 258 figuras insufláveis, rodeada por outras figuras no chão com uma bóia salva-vidas ou como se estivessem meio submersas num mar que as engole (Fig. 9). Antes disso, em fevereiro de 2016, cobriu as colunas do Konzerthaus – uma das salas de concerto mais importantes de Berlim – com centenas de coletes salva-vidas usados pelos refugiados para chegar à ilha grega de Lesbos, lugar onde Weiwei e a sua equipa instalaram um estúdio desde os inícios de 2016. A instalação (Fig. 10) serviu para receber os convidados do festival “Cinema para a Paz”, onde foram apresentados vários filmes e documentários sobre a situação dos refugiados como Fogo no mar de Gianfranco Rosi (2016). É sempre muito elevada a dificuldade para que uma peça como esta de Weiwei seja capaz de resistir ao funcionamento da instituição artística e do politicamente correcto, ou mesmo até que tenha isto como objectivo. Efectivamente, o perigo de que estas acções sejam subsumidas perante a lógica da opinião pública e do status quo é mais do que habitual. Até mesmo devido à tirania da selfie (Fig. 11).
A arte e as imagens podem sempre ser eclipsadas por uma ameaça maior, a do esteticismo. A fotografia que tirou o fotógrafo indiano Rohit Chawla para a revista India Today (Fevereiro de 2016) numa praia de Lesbos com Weiwei “a prestar homenagem” a Alan Kurdi não foge desse tratamento estetizado (Fig. 12). Novamente, o uso das imagens e não a sua condição é o que acaba por destruir as suas possibilidades de representação, num sentido político amplo. Talvez, por este mesmo motivo, também algumas peças do livro Êxodos de Sebastião Salgado correram este risco (Fig. 13). A acusação que dirigiu Susan Sontag ao trabalho do fotógrafo foi, precisamente, a de ter traído a singularidade dos acontecimentos que retratou, de ter retirado totalmente a realidade do seu contexto: «Tiradas em trinta e nove países, as fotografias de migração de Salgado agrupam, sob um único cabeçalho, um conjunto de causas diversas e tipos de sofrimento. […] Mas toda a política, como toda a história, é concreta».[36]
Por isso, o facto de a arte ou de o artístico se introduzirem na equação não nos garante nada, isto é, não nos proporciona a segurança de que as imagens ou as representações tenham um maior alcance daquele que tem um meme. A única coisa que a arte nos oferece é o enquadramento, esse espaço para o tempo, para demorarmos naquilo que está à nossa frente (Fig. 14). Artistas como Hito Steyerl insistiram na necessidade de fomentar estes espaços, mesmo até de que a arte se apropriasse das estratégias de pós-produção do “circulacionismo” para ressignificar não só as imagens, como também as formas de produção, distribuição e consumo que são impostas pelo mundo líquido e imaterial da Internet: fazer um curto-circuito do sistema com as suas próprias normas.[37]
Conclusões
Efectivamente, por uma vez, temos de nos mover no campo da estética e não apenas da arte, porque o cenário que se tentou desenhar, realmente, apresenta-se como um lugar de acção tremendamente complexo. Por um lado, tentou mostrar-se que a arte pode oferecer um lugar de crítica por se encontrar a meio caminho entre o emocional e o racional, mas, principalmente, porque a arte tem a capacidade de oferecer um ambiente epistémico diferente do da circulação indiscriminada de memes. O imediatismo das imagens e o seu apelo aos sentimentos situam-se num espaço dialéctico perante a estranheza do sentido que nos está a ser proposto. Mas, por outro lado, também há imagens não artísticas, outras formas de particularizar e concretizar a realidade, que podem gerar emoções positivas que conduzam a um sentimento de hospitalidade. Quando conseguem que paremos por um momento, quando chegam a travar o circuito de consumo visual ao qual nos habituámos, são outras as imagens, outras as representações e outros os vídeos que despertam as nossas emoções e pensamentos. Aqui, essa autonomia artística, à qual anteriormente apelei, é completamente inexistente, porque há um objectivo muito claro: convencer. Consiste em propostas de documentários como o já referido Fuego en el mar, outras como Astral (Setembro 2016) – produzida pela cadeia de televisão espanhola La Sexta –, ou a campanha lançada pela Amnistia Internacional “Olhe para além das Fronteiras”,[38] que directamente pretendem fazer-nos chorar. Isto é, parece que uma das conclusões à qual podemos chegar é que, agora, mais do que nunca, precisamos de imagens precárias, imagens incompletas, imagens únicas que se confrontem com os excessos e desperdícios visuais da nossa cultura, seja desde o lugar que for. Ainda que, por outro lado, continuemos a precisar daquilo a que chamamos “o tempo da arte”, dessa demora que costuma garantir a experiência estética. Só assim teremos uma oportunidade para que a hospitalidade se torne efectiva, para que se passe da discussão dos números à abertura das fronteiras, por mais selectiva e imperfeita que seja.
É verdade que as imagens acabam por se esvaziar de significado, ficam petrificadas, normalizadas e igualadas. Mas, talvez, só por meio delas, das palavras e dos testemunhos, sejam do tipo que forem, poderemos ser capazes de continuar a concretizar as situações, como quando Doris Salcedo dá nome aos afogados no Mediterrâneo com Palimpsesto de 2017 (Fig. 15). Se o problema se tornar uma abstracção, se ficar reduzido a um simples sintagma do género “crise de refugiados”, o aparecimento de um sentimento de hospitalidade como o aqui indicado será algo de muito improvável. Os relatos personalizam, atribuem um rosto, um nome e uma história ao número de refugiados. E aquilo que é estético, no sentido pleno da palavra, tem essa especificidade, pois precisa de estar colado à experiência, por mais mediada que seja. Isto já foi salientado: o sentimento de hospitalidade não é perfeito, porque é parcial, intermitente e circunstancial, mas é essa imperfeição que o torna necessário perante a impossibilidade de uma hospitalidade total, sem condições. Um sentimento que, aliás, é, por definição, inevitável e que pode levar a que nos reconheçamos como pessoas, assumindo assim, como pediu Žižek, o nosso dever ético.
1 Nilüfer Demir, fotografia de Alan Kurdi, 2015.
2 The Grosby Group, fotografia das irmãs Kardashian, 2017.
3 Raúl Zurita, The sea of pain, 2016.
4 Banu Cennetoglou, The list, de 1993 ao presente. Intervenção apresentada na Great George Street, Bienal de Liverpool de 2018. Imagem de Mark McNulty.
5 Alfredo Jaar, Cem vezes Nguyen, 1994.
6 Bouchra Khalili, The Mapping Journey Project, 2008–2011.
7 Rogelio López Cuenca, Canto VI, 2005.
8 Rogelio López Cuenca, fotogramas de Walls, 2006.
9 Ai Weiwei, A lei da viagem, 2017.
10 Ai Weiwei, instalação para o festival Cinema para a Paz, Konzerthaus, Berlín, 2016.
11 A atriz Charlize Theron e outros convidados do festival Cinema para a Paz, Konzerthaus, Berlín, durante a intervenção de Ai Weiwei, 2016.
12 Rohit Chawla, retrato de Ai Weiwei para a revista India Today, 2016.
13 Sebastião Salgado, Refugiados ruandeses no campo de Benako, Tanzânia, 1994.
14 Rogelio López Cuenca, Bienvenidos, 1998.
15 Vista da instalação Palimpsesto de Doris Salcedo, no Palácio de Cristal de Madrid, 2017.
[1] Slavoj Žižek, La nueva lucha de clases. Los refugiados y el terror. Trad. Damià Alou. Madrid, Anagrama, 2016, p. 95.
[2] Entrevista de Jordi Évole no programa Salvados, intitulado “Hijos de la ira: De Trump a Le Pen (II)”, e emitida na cadeia de televisão espanhola La Sexta, no dia 2 de Abril de 2017. Pode ser consultada em: https://www.atresplayer.com/lasexta/programas/salvados/temporada-12/capitulo-17-hijos-ira-trump-pen_5ad093f0986b2
855ed47aebe/ (data da última consulta: 15 de Junho de 2021).
[3] Slavoj Žižek, La nueva lucha de clases. Los refugiados y el terror. Trad. Damià Alou. Madrid, Anagrama, 2016, p. 95.
[4] Zygmunt Bauman, Extraños llamando a la puerta. Trad. Albino Santos Mosquera. Barcelona, Paidós, 2016, p. 70.
[5] Immanuel Kant, Hacia la paz perpetua. Trad. Jacobo Muñoz. Madrid, Biblioteca Nueva, 2016, pp. 113–114.
[6] Mar Cabezas, Ética y Emoción. El papel de las emociones en la justificación de nuestros juicios morales. Madrid, Plaza y Valdés, 2014.
[7] Eva Illouz, Intimidades congeladas. Las emociones en el capitalismo. Trad. Joaquín Ibarburu. Madrid, Katz, 2007, p. 15.
[8] Zygmunt Bauman, Extraños llamando a la puerta. Trad. Albino Santos Mosquera. Barcelona, Paidós, 2016, p. 73.
[9] Zygmunt Bauman y Leonidas Donskis, Ceguera moral: la pérdida de sensibilidad en la modernidad líquida. Trad. Antonio Francisco Rodríguez Esteban. Barcelona, Paidós, 2015, p. 21.
[10] Judith Butler, Vida precaria. El poder del duelo y la violencia. Trad. Fermín Rodríguez. Barcelona, Paidós, 2006, p. 20.
[11] Judith Butler, Vida precaria. El poder del duelo y la violencia. Trad. Fermín Rodríguez. Barcelona, Paidós, 2006, p. 21.
[12] Zygmunt Bauman, Extraños llamando a la puerta. Trad. Albino Santos Mosquera. Barcelona, Paidós, 2016, p. 36.
[13] Giorgio Agamben, Medios sin fin: notas sobre la política. Trad. Antonio Gimeno. Valencia, Pre-textos, 2001, p. 24.
[14] Hannah Arendt, “Nosotros, los refugiados”, en Tiempos presentes. Trad. Rosa Sala Carbó. Barcelona, Gedisa, 2002, p. 21.
[15] Aquí mantenho a abordagem de Domingo Hernández Sánchez em: «Roberte y San Julián. Sobre cierto sentimiento de Hospitalidad», em Benéitez Andrés, Rosa e Virginia Fusco (eds.). Hospitalidad: lo otro y sus fronteras. Madrid, Dykinson, 2021, pp. 57–68.
[16] Immanuel Kant, Hacia la paz perpetua. Trad. Jacobo Muñoz. Madrid, Biblioteca Nueva, 2016, p. 95.
[17] Jacques Derrida, Cosmopolitas de todos los países, ¡un esfuerzo más! Trad. Julián Mateo Ballorca. Valladolid, Cuatro Ediciones, 1996, pp. 41–42.
[18] Sergio Martínez Luna, Cultural visual: la pregunta por la imagen. Vitoria-Gasteiz, Sans Soleil Ediciones, 2019, p. 52.
[19] Sergio Martínez Luna, Cultural visual: la pregunta por la imagen. Vitoria-Gasteiz, Sans Soleil Ediciones, 2019, p. 52.
[20] Hito Steyerl, Arte Duty Free: el arte en la era de la guerra civil planetaria. Trad. Fernando Bruno. Buenos Aires, Caja Negra, 2018, pp. 207–208.
[21] Sergio Martínez Luna, “La frontera y el archivo según las nuevas condiciones de la visualidad digital”. Aposta. Revista de Ciencias Sociales, nº 78, 2018, p. 185.
[22] Jacques Rancière, El espectador emancipado. Trad. Ariel Dillon, Buenos Aires, Manantial, 2008, p. 97.
[23] Mario Montalbetti, Cualquier hombre es una isla. Lima, Fondo de Cultura Económica, 2015, p. 24.
[24] Hito Steyerl, Em defesa das imagens pobres. Trad. Susana L. Marques. Porto, Alix, n.º 1, Outono 2020, p. 38.
[25] Jean-Marie Schaeffer, La imagen precaria. Del dispositivo fotográfico. Trad. D. Jiménez. Madrid, Cátedra, 1990.
[26] George Didi Huberman, Imágenes pese a todo. Memoria visual del Holocausto. Trad. Mariana Miracle. Paidós, Barcelona, 2004, p. 116.
[27] Não nos vamos focar nesta ocasião no cinema, que partilha muitos dos rasgos que a seguir serão analisados a propósito de outras práticas. No entanto, remetemos para o trabalho desenvolvido pelo projecto de investigação anteriormente referido, Hospitality in European Film, e parcialmente contido em: Manzanas Calvo, Ana Mª Manzanas e Domingo Hernández Sánchez (eds.), Cine y hospitalidad. Narrativas visuales del Otro. Salamanca, Edições Universidade de Salamanca (col. Materiales de Arte y Estética), 2021.
[28] Emmanuel Levinas, Totalidad e infinito. Ensayo sobre la exterioridad. Trad. Daniel E. Guillot. Salamanca, Sígueme, 2002, p. 226.
[29] Byung-Chul Han, La expulsión de lo distinto. Trad. Alberto Ciria. Madrid, Herder, 2017.
[30] Domingo Hernández Sánchez, La ironía estética. Salamanca, Ediciones de la Universidad de Salamanca, 2002, pp. 15–32.
[31] Giorgio Agamben, Desnudez. Trad. Mercedes Ruvituso y M.ª Teresa D’Meza. Buenos Aires, Adriana Hidalgo editora, 2011, p. 151.
[32] Friedrich Schiller, Kallias. Cartas sobre la educación estética del hombre. Trad. Jaime Feijóo y Jorge Seca. Barcelona, Anthropos, 1990, p. 117.
[33] Alfredo Jaar, “Entrevista”, El País, 15 sept. 1998, https://elpais.com/diario/1998/09/15/paisvasco/905888421_850215.html
[34] Homero. Odisseia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2015
[35] Estrella de Diego, Rincones de postales. Turismo y hospitalidad. Madrid, Cátedra, 2014.
[36] Susan Sontag, Ante el dolor de los demás. Trad. Aurelio Major. Barcelona, Random house, 2010, pp. 70–71.
[37] Hito Steyerl, Arte Duty Free: el arte en la era de la guerra civil planetaria. Trad. Fernando Bruno. Buenos Aires, Caja Negra, 2018.
[38] https://www.amnesty.org/en/latest/news/2016/05/look-refugees-in-the-eye/
Situação Crítica
Além do fotograma
Susana S. Martins
What do U Want 4 Xmas?
Vera Carmo
Da pandemia das imagens às imagens necessárias
Fernando José Pereira
Em defesa das imagens pobres
Hito Steyerl
O azul das pirâmides
Susana Lourenço Marques
Thriller, suspense e livros de fotografia
Celia Vega Pérez & Luis Deltell
Rosa Benitez Andrés
Não vou contar a visita. Tentei, mas é avassalador. Ocupa, de imediato, espaço a mais, não pode ser contida nos limites de uns quantos parágrafos.
Calais
Emannuel Carrère, 2016
As consequências directas de um cenário como este que se acabou de resumir são as seguintes: as obrigações morais que estamos dispostos a admitir são cada vez menores e as acções pelas quais nos responsabilizamos estão mais restringidas.[8] É como se, nas palavras de Bauman e Donskins, tivéssemos sido inoculados com uma espécie de vírus da “cegueira moral” que nos impede de assumir o sofrimento alheio:
É a cegueira moral – escolhida, auto-imposta ou aceite com fatalidade – numa época que, mais do que qualquer outra coisa, precisa de rapidez e agudeza na apreensão e nas emoções. Com a finalidade de recuperar a nossa capacidade perceptiva em tempos obscuros, é necessário devolver tanto a dignidade como também a ideia da essencial incomensurabilidade dos seres humanos, não só aos grandes do mundo, mas também aos extras da multidão, ao indivíduo estatístico, às unidades estatísticas, ao vulgo, ao eleitorado, ao homem da rua, ao cidadão comum, isto é, a todos esses conceitos enganadores.[9]
As cada vez mais difundidas abstracção e espectacularização das histórias e das vidas dos indivíduos abrem caminho para decretar uma nova fronteira, uma divisão extrema entre o nós e o vós; o que a psicologia social denomina como favoritismo do endogrupo sobre o exogrupo. Esta divisão não deveria implicar problemas maiores – não seria mais do que outra forma de categorização social – se não fosse porque esse vós que, como dissemos, já só é considerado no que diz respeito à rentabilidade, pode acabar por ser excluído do nosso âmbito de moralidade. É mais simples livrar-se da responsabilidade sobre o próximo, quando o relego a um espaço completamente indiferente àquele dos meus deveres. Consiste na mesma chamada de atenção que fez Judith Butler, seguindo a mesma linha de Levinas, a respeito da nossa interdependência como seres humanos e do papel que desempenham nesse reconhecimento os imaginários culturais: «as formas dominantes de representação podem e devem ser destruídas para que algo sobre a precariedade da vida possa ser apreendido».[10] Somente desta forma poderão ser combatidos esses enquadramentos que não nos permitem perceber determinados sujeitos como seres humanos e que, directamente, os excluem da vida pública: «O que está privado de rosto, ou cujo rosto nos é apresentado como o símbolo do mal, autoriza a tornarmo-nos insensíveis perante as vidas que eliminamos e cujo luto é, indefinidamente, adiado».[11]
Deste modo, quando os migrantes são equiparados a potenciais terroristas, sendo colocados nesse espaço crescente de irresponsabilidade moral, sentimo-nos quase aliviados por sermos dispensados do nosso dever, ao deixar estes indivíduos fora do seu campo de acção.[12] Este é o perigo da despersonalização e da desumanização: são excluídos da categoria de legítimos detentores de direitos humanos: «a figura – o refugiado – que deveria ter personificado por excelência os direitos do homem, marca, pelo contrário, a crise radical deste conceito».[13] Se continuarmos centrados, portanto, no contexto da actual crise migratória, parece que o cenário que se avizinha é ainda mais degradante do que aquele que anunciara Arendt na década de 1940:
Se começarmos a dizer a verdade, isto é, que somos apenas judeus, estaríamos expostos, unicamente, ao destino da humanidade, não nos protegeria nenhuma lei específica nem nenhuma convenção política, não seríamos mais do que seres humanos. Apenas consigo imaginar uma abordagem mais perigosa, pois o facto é que, desde há muito tempo, vivemos num mundo onde já não existem mais meros seres humanos. A sociedade descobriu na discriminação um instrumento letal para matar sem derramamento de sangue. Passaportes, certidões de nascimento e, às vezes, até mesmo a declaração de rendimentos já não são documentos formais, mas sim uma questão de diferenciação social.[14]
Actualmente, nenhum estado de acolhimento assume a cidadania destas pessoas, mas o conjunto da sociedade civil também não reconhece o seu inalienável direito à vida. É evidente que assumir responsabilidades sem limites e sem excepções pelo bem do outro é uma tarefa impossível, quase sagrada, que ultrapassa as nossas capacidades e virtudes. No entanto, esses limites, essas fronteiras, não podem ser aplicados às pessoas susceptíveis de entrar no nosso âmbito de obrigação moral. A realidade impõe-nos a incapacidade de chegar a todos, mas não a obrigação de diferenciar entre nós e eles. Além disso, não pode ser ignorado o facto de que a diferença entre esse eles e o nós não é territorial, isto é, horizontal, mas sim vertical ou social.
Em direção a um sentimento de hospitalidade[15]
Por isso, nesse mesmo tratado no qual Kant se referia à discrepância entre a ética e a política – um tratado jurídico – não o esqueçamos, o filósofo condiciona a existência de uma paz universal, de uma convivência real, à existência de uma hospitalidade universal. No terceiro artigo definitivo do programa, Kant propõe um direito de hospitalidade como condição necessária para a paz entre as nações:
Hospitalidade (Wirthbarkeit) aqui significa o direito de um estrangeiro de não ser tratado de forma hostil pelo facto de ter chegado ao território de outro. Este pode rejeitar o estrangeiro, se isso puder ser feito sem a sua ruína, mas, enquanto o estrangeiro se comportar amigavelmente no seu lugar, não poderá ser combatido de forma hostil. Não existe nenhum direito de hóspede no qual se possa basear esta exigência [...] mas antes um direito de visita, direito de se apresentar à sociedade que todos os homens têm em virtude do direito de propriedade em comum da superfície da Terra, [...] tendo de se suportar uns junto dos outros, e ninguém tendo originariamente mais direito do que outro a estar num determinado lugar da Terra.[16]
Para o filósofo alemão, a hospitalidade está situada no campo da ética, das normas legítimas, mas sempre condicionada ao “comportamento amigável” do estrangeiro. Um facto que, poder-se-ia pensar, acaba com a sua condição de estrangeiro. Ou seja, deparamo-nos com a condição que esse comportamento amigável é, no fundo, um requisito político que exige a sua igualização, a eliminação do traço do “outro” e de se tornar “um”. Além disso, o estrangeiro tem um direito de visita e não de residência devido ao legítimo “direito de propriedade em comum da superfície da Terra”. Uma hospitalidade, então, condicionada, que será criticada por Derrida ao entendê-la como um acto de violência contra o outro: comportar-se amigavelmente é assimilar-se. Deste modo, o filósofo francês insistirá na necessidade de não se limitar ao plano jurídico e chegar ao plano ético, que para ele é hospitaleiro por si mesmo:
A hospitalidade é cultura em si própria e não simplesmente uma ética entre as outras. Na medida em que diz respeito ao ethos, ou seja, à morada, à nossa casa, ao lugar de residência familiar, dado que é uma forma de nela estar, a maneira de nos relacionar connosco e com os outros, com os outros como nossos ou como estrangeiros, a ética é hospitalidade; a ética é tão minuciosamente coextensiva com a experiência da hospitalidade, seja qual for o modo como se abra ou se a limite. Mas, por este mesmo motivo e porque o ser-se si mesmo na sua própria casa (a própria ipseidade) supõe um acolhimento ou uma inclusão do outro que tentamos possuir, controlar, dominar, segundo diversas modalidades de violência, há uma história da hospitalidade, uma perversão sempre possível d’A lei da hospitalidade (que pode parecer incondicional) e umas leis que a limitam, condicionam ao inscrevê-la num direito.[17]
[1] Slavoj Žižek, La nueva lucha de clases. Los refugiados y el terror. Trad. Damià Alou. Madrid, Anagrama, 2016, p. 95.
[2] Entrevista de Jordi Évole no programa Salvados, intitulado “Hijos de la ira: De Trump a Le Pen (II)”, e emitida na cadeia de televisão espanhola La Sexta, no dia 2 de Abril de 2017. Pode ser consultada em: https://www.atresplayer.com/lasexta/programas/salvados/temporada-12/capitulo-17-hijos-ira-trump-pen_5ad093f0986b2
855ed47aebe/ (data da última consulta: 15 de Junho de 2021).
[3] Slavoj Žižek, La nueva lucha de clases. Los refugiados y el terror. Trad. Damià Alou. Madrid, Anagrama, 2016, p. 95.
[4] Zygmunt Bauman, Extraños llamando a la puerta. Trad. Albino Santos Mosquera. Barcelona, Paidós, 2016, p. 70.
[5] Immanuel Kant, Hacia la paz perpetua. Trad. Jacobo Muñoz. Madrid, Biblioteca Nueva, 2016, pp. 113–114.
[6] Mar Cabezas, Ética y Emoción. El papel de las emociones en la justificación de nuestros juicios morales. Madrid, Plaza y Valdés, 2014.
[7] Eva Illouz, Intimidades congeladas. Las emociones en el capitalismo. Trad. Joaquín Ibarburu. Madrid, Katz, 2007, p. 15.
[8] Zygmunt Bauman, Extraños llamando a la puerta. Trad. Albino Santos Mosquera. Barcelona, Paidós, 2016, p. 73.
[9] Zygmunt Bauman y Leonidas Donskis, Ceguera moral: la pérdida de sensibilidad en la modernidad líquida. Trad. Antonio Francisco Rodríguez Esteban. Barcelona, Paidós, 2015, p. 21.
[10] Judith Butler, Vida precaria. El poder del duelo y la violencia. Trad. Fermín Rodríguez. Barcelona, Paidós, 2006, p. 20.
[11] Judith Butler, Vida precaria. El poder del duelo y la violencia. Trad. Fermín Rodríguez. Barcelona, Paidós, 2006, p. 21.
[12] Zygmunt Bauman, Extraños llamando a la puerta. Trad. Albino Santos Mosquera. Barcelona, Paidós, 2016, p. 36.
[13] Giorgio Agamben, Medios sin fin: notas sobre la política. Trad. Antonio Gimeno. Valencia, Pre-textos, 2001, p. 24.
[14] Hannah Arendt, “Nosotros, los refugiados”, en Tiempos presentes. Trad. Rosa Sala Carbó. Barcelona, Gedisa, 2002, p. 21.
[15] Aquí mantenho a abordagem de Domingo Hernández Sánchez em: «Roberte y San Julián. Sobre cierto sentimiento de Hospitalidad», em Benéitez Andrés, Rosa e Virginia Fusco (eds.). Hospitalidad: lo otro y sus fronteras. Madrid, Dykinson, 2021, pp. 57–68.
[16] Immanuel Kant, Hacia la paz perpetua. Trad. Jacobo Muñoz. Madrid, Biblioteca Nueva, 2016, p. 95.
[17] Jacques Derrida, Cosmopolitas de todos los países, ¡un esfuerzo más! Trad. Julián Mateo Ballorca. Valladolid, Cuatro Ediciones, 1996, pp. 41–42.
[18] Sergio Martínez Luna, Cultural visual: la pregunta por la imagen. Vitoria-Gasteiz, Sans Soleil Ediciones, 2019, p. 52.
[19] Sergio Martínez Luna, Cultural visual: la pregunta por la imagen. Vitoria-Gasteiz, Sans Soleil Ediciones, 2019, p. 52.
[20] Hito Steyerl, Arte Duty Free: el arte en la era de la guerra civil planetaria. Trad. Fernando Bruno. Buenos Aires, Caja Negra, 2018, pp. 207–208.
[21] Sergio Martínez Luna, “La frontera y el archivo según las nuevas condiciones de la visualidad digital”. Aposta. Revista de Ciencias Sociales, nº 78, 2018, p. 185.
[22] Jacques Rancière, El espectador emancipado. Trad. Ariel Dillon, Buenos Aires, Manantial, 2008, p. 97.
[23] Mario Montalbetti, Cualquier hombre es una isla. Lima, Fondo de Cultura Económica, 2015, p. 24.
[24] Hito Steyerl, Em defesa das imagens pobres. Trad. Susana L. Marques. Porto, Alix, n.º 1, Outono 2020, p. 38.
[25] Jean-Marie Schaeffer, La imagen precaria. Del dispositivo fotográfico. Trad. D. Jiménez. Madrid, Cátedra, 1990.
[26] George Didi Huberman, Imágenes pese a todo. Memoria visual del Holocausto. Trad. Mariana Miracle. Paidós, Barcelona, 2004, p. 116.
[27] Não nos vamos focar nesta ocasião no cinema, que partilha muitos dos rasgos que a seguir serão analisados a propósito de outras práticas. No entanto, remetemos para o trabalho desenvolvido pelo projecto de investigação anteriormente referido, Hospitality in European Film, e parcialmente contido em: Manzanas Calvo, Ana Mª Manzanas e Domingo Hernández Sánchez (eds.), Cine y hospitalidad. Narrativas visuales del Otro. Salamanca, Edições Universidade de Salamanca (col. Materiales de Arte y Estética), 2021.
[28] Emmanuel Levinas, Totalidad e infinito. Ensayo sobre la exterioridad. Trad. Daniel E. Guillot. Salamanca, Sígueme, 2002, p. 226.
[29] Byung-Chul Han, La expulsión de lo distinto. Trad. Alberto Ciria. Madrid, Herder, 2017.
[30] Domingo Hernández Sánchez, La ironía estética. Salamanca, Ediciones de la Universidad de Salamanca, 2002, pp. 15–32.
[31] Giorgio Agamben, Desnudez. Trad. Mercedes Ruvituso y M.ª Teresa D’Meza. Buenos Aires, Adriana Hidalgo editora, 2011, p. 151.
[32] Friedrich Schiller, Kallias. Cartas sobre la educación estética del hombre. Trad. Jaime Feijóo y Jorge Seca. Barcelona, Anthropos, 1990, p. 117.
[33] Alfredo Jaar, “Entrevista”, El País, 15 sept. 1998, https://elpais.com/diario/1998/09/15/paisvasco/905888421_850215.html
[34] Homero. Odisseia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2015
[35] Estrella de Diego, Rincones de postales. Turismo y hospitalidad. Madrid, Cátedra, 2014.
[36] Susan Sontag, Ante el dolor de los demás. Trad. Aurelio Major. Barcelona, Random house, 2010, pp. 70–71.
[37] Hito Steyerl, Arte Duty Free: el arte en la era de la guerra civil planetaria. Trad. Fernando Bruno. Buenos Aires, Caja Negra, 2018.
[38] https://www.amnesty.org/en/latest/news/2016/05/look-refugees-in-the-eye/
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
Avenida Rodrigues de Freitas, 265
4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020