[Livro]
ON ABORTION, A HISTORY OF MISOGYNY CHAPTER ONE – ON ABORTION AND THE REPERCUSSIONS OF LACK OF ACCESS
LAIA ABRIL 2018
DEWI LEWIS PUBLISHING
LUCIANA LIMA
Recolher fotografias é recolher o mundo, escreveu Susan Sontag em 1977. No actual contexto em que a realidade é devorada pela imagem mediática e de uma arte votada aos monitores e às imagens de síntese, como diz Rancière (2011), as histórias contadas através de imagens fotográficas são recortes do mundo que qualquer pessoa pode fazer ou adquirir.
Quando nos centramos na ostensiva reprodutibilidade da fotografia da geração Instagram, na qual as imagens se reduzem-, muitas vezes, a meros clichés visuais, a fotografia parece perder o seu valor contemplativo e, mais do que isso, parece perder o seu efeito perturbador, aquele que ativa o nosso potencial pensativo e questionador. Mas, felizmente, nem sempre é assim. Há (e aqui me incluo) espectadores atentos ao potencial disruptivo das imagens fixadas nas redes sociais.
Foi no Instagram que encontrei a artista Laia Abril, ou melhor, a research-based artist como ela se descreve no seu website. No trabalho desta artista, fiquei interessada pela forma como Abril abordou, através da sua narrativa visual, um tema amplo e complexo – a misoginia.
On Abortion (and the repercussions of lack of access) é o primeiro capítulo da série A History of Misogyny, que inclui outros dois capítulos, nomeadamente On Mass Hysteria e On Rape.
Embora a narrativa visual da obra On Abortion tenha sido inicialmente apresentada em forma de exposição nos Rencontres d’Arles em 2016, foi somente em 2018 que teve a sua publicação em livro, editado pela Dewi Lewis Publishing.
Da sua primeira exposição até à publicação do referido livro, Laia Abril apresentou On Abortion em diferentes países: Espanha, México, Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Finlândia e Croácia. Sublinhou publicamente que a exposição vem sempre antes do livro porque, para a artista, a montagem do mesmo é o resultado do que as pessoas sentiram e exteriorizaram após verem a exposição.
O livro é assumidamente documental, distraidamente fotojornalístico e esteticamente provocativo. Reflecte, segundo Laia Abril, a metodologia de trabalho que aprendeu durante a sua residência artística na Fabrica, o conceituado centro de pesquisa em comunicação, sediado na cidade italiana Treviso.
O design editorial, assinado pela própria artista em parceria com Ramon Pez (director de arte da Revista Colors) reflecte o cuidado de ambos em intercalar, de forma ponderada, o visual gráfico e o conteúdo do livro. A combinação de fotografias, excertos de vídeos, publicidade, anúncios de jornais, documentos e imagens encontradas em arquivos e museus, informações públicas consultadas na internet e os testemunhos de pessoas reais são os elementos que compõem as metáforas visuais sobre o aborto pelo olhar da artista.
Os anúncios de pílulas para tratar os distúrbios femininos ou irregularidades menstruais, bem como a publicidade das médicas da regularização do atraso menstrual aparecem nas frestas da sua narrativa visual. Eles abrem e fecham a obra, indicando-nos que se trata de uma pesquisa histórica, fundamentada em excertos de fontes primárias de informação.
As fotografias dos rostos, pixelizados ou não, são partes essenciais da estrutura narrativa. Estas estão presentes do início ao fim do livro, sempre acompanhadas dos testemunhos reais de quem experienciou a dimensão trágica do aborto ilegal e não seguro. Alguns destes testemunhos ganham contornos ainda mais trágicos quando a artista ilustra, com fotografias, os objectos reais que dão veracidade às memórias subjectivas evocadas pelas pessoas fotografadas. Imagens que fazem alusão às roupas que vestiam, às viagens que fizeram para poderem abortar de forma segura, aos remédios de indução do aborto, aos ultrassons, às clínicas clandestinas, aos instrumentos de cirurgia, à tortura psicológica e ao julgamento moral que sofreram.
Esta relação de autenticidade da fotografia com a vida real, de contiguidade, como refere Margarida Medeiros (2009), foi sempre uma das propriedades mais idiossincráticas da fotografia. No livro On Abortion, Laia Abril aproveita-se dessa vertigem realista e dessa transparência própria da imagem que se quer nua. Ou seja, a imagem votada exclusivamente ao testemunho, aquela que, segundo Rancière (2011), visa sempre algo que transcende aquilo que apresenta. As fotografias das clínicas clandestinas de aborto, por exemplo, testemunham não apenas a frieza e aridez do espaço físico, mas também as mortes, reais e simbólicas, ali provocadas.
As representações fotográficas das narrativas do passado e do presente, seja do ponto de vista médico e científico sobre o aborto, seja do ponto de vista religioso, estão sobrepostas em toda a obra, indicando uma trajetória de leitura não linear, onde deslizam perante o/a leitor/a-
-espectador/a de imagens, aparentemente dissemelhantes e contraditórias, reforçando o carácter irónico da obra.
Os múltiplos fragmentos sobre o aborto são recompostos e escoados nas imagens textuais e fotográficas que parecem funcionar como vasos comunicantes, simultaneamente tentando tornar visível o potencial especulativo das imagens seleccionadas pela artista, com as implicações políticas, culturais e religiosas que repercutem na (i)legalização do aborto em diferentes países.
As legendas e as imagens são intercaladas por páginas negras e brancas que nos conduzem à interrupção momentânea da narrativa, como se reclamassem ao/à espectador/a o seu silêncio e a reflexão crítica sobre o tema.
Um dos aspectos mais provocadores do livro é a cadência que a narrativa visual adquire à medida que manuseamos as suas páginas. Cada página é embalada pela disposição dos textos/legendas (situados nos cantos e nas páginas desdobráveis, com diversas tipografias) em contraste com as imagens (preto e branco, tons de cinza e policromáticas, a maioria ampliadas), distribuídas em diferentes tipos de papel (pólen, couché). É como se as partes do livro compusessem uma peça teatral, seduzindo o/a leitor/a-espectador/a através de um universo imagético paradoxal que é simultaneamente poético e trágico.
No seu conjunto, o livro de Laia Abril é o retrato de uma abordagem artística que integra a investigação histórica, o uso de imagens de arquivos, notícias e testemunhos, fotografias criadas e apropriadas. Todos estes elementos estão cuidadosamente distribuídos na obra, tal como demonstra a qualidade do design editorial. É, sem dúvida, um trabalho artístico e editorial que estimula a reflexão sobre o tema abordado e consegue prender a atenção sem ferir a sua sensibilidade. E, acima de tudo, resume uma abordagem artística politicamente engajada e preocupada em recontextualizar as narrativas do passado e confrontá-las com as narrativas do presente, perturbando a vulgar circulação de clichés visuais na era onde imperam as imagens efémeras fixadas nas redes sociais.
OLHAR—VER
Bostofrio: Où Le Ciel Rejoint La Terre
Inês Costa
O Pecado
Luís Miguel Martins Miranda
Quo Vadis, Aida?
Luís Miguel Martins Miranda
Vazante
Felipe Argiles Silveira
Arthur Jafa, uma série de prestações absolutamente improváveis, porém extraordinárias (Arthur Jafa, 2020)
Roberto Leite
Ama-San (Cláudia Varejão, 2016)
Rita Almeida Leite
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
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4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020