[Filme/Livro/Exposição]
Ama-San
Cláudia Varejão, 2016
RITA ALMEIDA LEITE
Ama-san é um documentário realizado por Cláudia Varejão que resulta de duas viagens ao Japão e nos transporta para a vila piscatória de Wagu, na Península de Ise-Shima. Nela encontramos um grupo de oito mulheres, as Ama (베훙, “mulheres do mar”), que mergulham em alto-mar, até vinte metros de profundidade, em condições que respeitam uma tradição milenar: mergulham em apneia, sem oxigénio, para apanhar algas, ouriços, abalones, e antigamente também ostras e as suas pérolas.
Varejão traz-nos um olhar que se desdobra entre a imagem em movimento e a imagem parada: o filme, um livro e, mais tarde, uma exposição de fotografia. No filme, a realizadora acompanha o dia-a-dia de três mulheres (Mayumi, Masumi e Matsumi) e todos os rituais, os momentos de pausa e movimento, que envolvem o ofício destas Ama e como se fundem com o banal do quotidiano que preenche as horas longe do mar.
Há desde de logo uma relação de oposição, mas também de complemento, entre dois pesos: o da força, presente na brutalidade física que lhes é exigida no trabalho do mar, e o da fragilidade, presente no lado mais doméstico das suas vidas, em que assumem o papel de mães e donas de casa. Apesar destas Ama não se absterem das suas funções enquanto mães e mulheres numa sociedade profundamente patriarcal, assistimos em simultâneo, a uma dinâmica de excepção, que vem subverter o papel social tipicamente atribuído ao homem como única fonte de rendimento. Aqui essa dinâmica tem particular pertinência, por falarmos de uma comunidade oriental, onde estas disparidades se mantêm praticamente inalteradas até hoje.
A faixa etária destas Ama vai desde os 38 anos de idade, a mais nova das mergulhadoras, até à mais velha e experiente (Matsumi), com os seus humildes 83 anos. Neste ofício, observamos ao longo do filme que a idade é sinónimo de experiência e eficiência, não só física mas também espiritual. Este valor reflecte-se, por exemplo, no lenço que todas colocam sobre os fatos de mergulho. No filme observamos que o lenço se apresenta como símbolo espiritual que ficou desta tradição milenar, que o fato de mergulho foi imposto pela Federação de Pesca do Japão na década de 1980 e, inclusive, através de registos fotográficos, que as primeiras Amas mergulhavam nuas.
O filme é o resultado mais insinuante desta viagem mas é não é o primeiro formato em que o olhar da autora se precipita. O primeiro contacto que realiza com esta vila piscatória, e as Amas, é feito meses antes da filmagem. Nessa primeira viagem Varejão realiza uma série de registos fotográficos, que funcionam como uma espécie de diário ou notas pessoais, que mais tarde viriam a desdobrar-se num livro de fotografia[1] e depois numa exposição.[2]
A fotografia surge aqui como um estudo cinematográfico, um esboço do filme. Desdobramento é a palavra correcta para falar do livro: encadernado ao estilo japonês, com um papel único para a capa de cada edição, o livro abre-se em fole para nos mostrar uma selecção de momentos. Este formato permite uma vista mais clássica de livro, em que ele pode ser folheado, e uma leitura panorâmica cuja disposição contínua e horizontal nos remete para a própria ideia de frame. Nesta sequência de fotografias são retratadas as Ama-San das vilas piscatórias de Wagu, Ijika, Oosatsu e Toushijima.
O cinema é apreendido como um todo, tendo um tempo transversal aos que o visionam, enquanto que a imagem fixa, a fotografia, assume um tempo que é totalmente auto-determinado. Isto permite-nos reflectir sobre a possibilidade que a autora propõe ao criar estes diferentes formatos de visualização das imagens (o filme, o livro e a exposição) como a abertura a três tempos diferentes de contemplação. Cria-se assim uma relação de complementaridade, muito mais do que de suplementaridade, entre o filme e os outros formatos, pois não se tratam apenas de stills retirados de um formato para o outro.
Cada fotografia tem o seu tempo e apesar da sua imobilidade, sentimos o desenrolar de uma acção ou momento que as atravessa. Na exposição, as imagens dividem-se entre diferentes formatos, apesar de usarem o mesmo suporte (35 mm), e vão desde de ampliações de grande formato, a polaroids e diapositivos. Cada formato tem a sua forma de visionamento e disposição no espaço de exposição.
A vontade de documentar advém sempre de uma necessidade de imortalizar algo que achamos que deve ser lembrado. A fotografia tem essa particularidade de tempo suspenso. As fotografias surgem como instantes intermináveis, que parecem excluir um antes e um depois, enquanto que o filme nos dá sempre a sensação que continua para lá do negro da tela.
SUBIR E VER O CÉU; DESCER E VER O MAR; E TUDO É AZUL.
Azul é a cor que permeia o filme e muitos dos registos fotográficos, não fosse ela também a cor da calma e da serenidade, estados facilmente associáveis a um modo de estar oriental de onde nos chegam estas Amas. A cor é só mais um elemento passível de nos transportar para esta ideia de unidade, mas também união, que habita nas rotinas destas oito mulheres e que é aqui visualmente captada através desse silêncio. Um silêncio que poderia ser o do fundo mar, que nos envolve como se de um mergulho se tratasse, e se manifesta no filme pela ausência de explicações sobre o que é observado.
O filme revela-se como um poema visual, um poema em movimento, uma imagem e um gesto por cada palavra que parece não chegar para nomear as relações, afectivas e sensoriais, que se operam no seio desta pequena comunidade. Há um acordo tácito de entreajuda e companheirismo que se manifesta nas idas e vindas ao mar, na forma como se apoiam na colocação do lenço, como se secam deitadas lado a lado: «Prestei atenção aos gestos. A vivência é feita de pequenos gestos. Tudo são gestos: gestos no fundo do mar, gestos na preparação, gestos em casa. Essa repetição do gesto e da beleza do gesto interessava-me».[3]
A questão do silêncio não surge só dessa vontade de valorizar e isolar os gestos mas também de uma limitação que é imposta pela língua, dado a realizadora não falar japonês e o contacto ser feito a partir de gestos ou de tradutores. Esta incapacidade de comunicar verbalmente fez com que, segundo a autora, ela se transformasse numa espécie de presença ausente. Por nunca se dirigirem directamente a ela para comunicar, abriu-se um espaço de quase invisibilidade que Varejão ocupou e lhe permitiu essa aproximação/intimidade na captação. Este é um dos elementos que causa uma forte impressão no visionamento do filme, e que nos faz pensar como terá sido possível este grau de intimidade, sabendo que em causa está uma pequena comunidade japonesa, fechada e tradicional. Cenas como as refeições, o aniversário de um membro da família e troca de prendas, uma avó que se deita ao lado do neto e lhe canta para adormecer. Neste aspecto, o filme permite uma relação de intimidade com o observado que não é tão presente no livro de fotografia, em que há um espaço maior para registo de um contexto ou envolvência, que incidem mais sobre os próprios espaços da vila.
Estas Ama são em si mesmas um desdobramento do passado, presente e futuro desta prática de outro tempo. Elas são o documento vivo de uma memória colectiva e o filme vem como que vincar uma marca sobre a história desta prática milenar. A Ama mais nova espelha a mais velha e vice versa, filhas do presente, proprietárias do futuro.
[1] Livro de edição de autor de 300 exemplares numerados. Com encadernação em Cho Gosguin e 50 capas distintas em papel japonês, este livro em harmónio feito quase exclusivamente à mão integra 39 fotografias do projecto Ama-San 베큽ㅅㆃ.
[2] A exposição teve lugar na Fundação do Oriente de 26 de junho a 30 de agosto de 2015.
[3] Moreira Marques, Susana. (2017) Cláudia Varejão: Num país onde não dominamos a língua, exploramos os outros sentidos. Disponível em, Cláudia Varejão: Num país onde não dominamos a língua, exploramos os outros sentidos (acedido a 20 de março de 2020)
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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020