[Filme]
Vazante
Daniela Thomas, 2017
FELIPE ARGILES SILVEIRA
O filme Vazante, dirigido por Daniela Thomas, propõe trabalhar as relações e conflitos entre negros e brancos no século XIX. A longa metragem passa-se no território brasileiro durante o período da escravidão, expondo as tensões e situações de violência geradas pelos confrontos entre colonos e escravizados. O drama desenvolve-se em torno de um fazendeiro português que busca um novo casamento, pois perdeu sua esposa e seu filho num parto mal sucedido. Vazante também aborda a posição das mulheres dentro da estrutura social da época colonial. O filme aponta distintas formas de abuso, domínio psicológico e físico, às quais estas eram expostas. O presente texto procura analisar o filme Vazante, tendo em consideração as críticas referentes aos distintos modos de representação entre pessoas negras e brancas; e a ausência de uma crítica aprofundada nas questões raciais. Autores e personagens serão destacados para realizar aproximação de tópicos relevantes, procurando ampliar a discussão. Concluiremos com uma reflexão sobre as contribuições do filme de Thomas, na discussão de questões raciais no contexto brasileiro.
Em entrevista para a Globo Filmes, Thomas destaca que o cinema brasileiro carece de produções voltadas para o passado do país, sendo raros os filmes que fazem reconstruções históricas e destaca o cuidadoso trabalho de pesquisa desenvolvido para a produção: «Fizemos um trabalho muito intenso de pesquisa. Lemos tudo. Ou quase tudo. Desde Casa-Grande & Senzala (de Gilberto Freyre) e Raízes do Brasil (de Sérgio Buarque de Holanda) até autores mais recentes, que deram um grande impulso à historiografia brasileira da década de 1980 para cá. É interessante porque há visões quase que antagónicas entre eles. Li muito sobre as estratégias dos escravos, tanto de adaptação quanto de resistência. A Mary del Priore nos trouxe detalhes deliciosos das relações interpessoais: crenças sobre o corpo e o convívio, a ausência do amor romântico, por exemplo. A gente, às vezes, acha que o mundo inteiro sempre namorou como nós namoramos hoje.»[1]
Posto isso, o trabalho, que parecia contemplar uma forte postura crítica, parece entregar um relato já conhecido da história do Brasil. Entre a beleza estética dos quadros cuidadosamente planeados em preto e branco, linhas sonoras delicadamente construídas com pássaros e ruídos da mata, deparamo-nos com o desenrolar da vida de António, colono português que pretende ter um filho para dar continuidade à sua família. O filme foi muito contestado pela crítica e pela falta de profundidade nas abordagens relativas à vida dos negros daquele tempo, servindo apenas como mais uma visão sobre as estruturas coloniais.Vazante não é trabalhado com o intuito de colocar o espectador em conflito com a vida dos escravos, evitando mergulhar nas suas subjectividades e questões. O filme aprofunda o drama do colono António, deixando em segundo plano e com menor protagonismo a vida dos escravizados.
Em Vazante temos dois universos distanciados, os brancos e os negros. Os pontos de contacto entre esses dois mundos são marcados pela violência e tensão constante. Parece-me importante destacar nas duas personagens que fazem essas ligações: Jeremias e Beatriz. Estas personagens desempenham complicados papéis simbólicos, sendo Jeremias o homem negro que contribui para a violência sobre seu povo; Beatriz, o ponto de ligação branca aparentemente inconsciente, inerte e benevolente com as crianças negras. É também importante referir a forma generalista com que os negros são representados. Mesmo sendo a maior parte do elenco, muitos não possuem nomes nem direito a voz, não falam português e não possuem legendas. Suas representações são realizadas de forma genérica sem aproximações e com pouquíssimos destaques sobre suas individualidades e histórias.
Podemos fazer ligação com os nossos tempos, onde no Brasil algumas pessoas da elite económica possuem o direito da condição de “ser humano”, deixando para a maior parcela da população o status de “coisas”, Vazante reproduz estas relações de forma aparentemente inconsciente. Para pensar sobre esses distintos grupos na sociedade brasileira, julgo importante trazer o autor Vladimir Safatle.[2] O autor considera relevante entendermos a dinâmica colonial, baseada numa “distinção ontológica”, que configura dois regimes distintos de subjectivação, onde cada grupo possui diferentes direitos e relevância dentro da sociedade. Posto isso, podemos entender como se colocam as questões de história, memória e representação no caso brasileiro.
O filme, mesmo sendo definido local e ano, remete a um lugar suspenso, uma espécie de ilha perdida no tempo e espaço. A filmagem a preto e branco e os sons da floresta e dos pássaros constroem um ambiente idealizado. A fazenda não é definida em relação a outra localidade, as estradas não tornam claro o caminho, como que a representar um espaço de memória. Os largos espaços de tempo com poucas acções contribuem para a experimentação do tédio e do medo vivido na época.
As tensões entre as personagens, são gritos no vácuo, diluem-se entre a densa vegetação que circunda a fazenda, como se não houvesse forma de descontinuar aquelas relações sociais. Os planos abertos da vegetação ilustram a imensidão deste local distópico, perdido entre os tons de cinza da mata brasileira filmada em preto e branco.
Nesse sentido, importa estabelecer um paralelo com a obra Olhos d’água de Conceição Evaristo, que retrata, através das suas personagens, na sua maioria mulheres negras, a dureza da vida no Brasil. Em Olhos d’água as personagens têm nome e voz e são extremamente sensíveis e fortes. Ao longo dos 15 contos que compõem o livro, a autora dá protagonismo àqueles que a história do país, construído sobre a exploração e escravidão, insiste em negar destaque. As mulheres de Evaristo contam as suas próprias histórias, mergulham na complexidade das suas subjectividades, amam e sofrem, sonham e vivem a particularidade dos seus contextos sociais. No livro Olhos d’água criamos conexão e empatia com as personagens, aproximamo-nos dos seus rostos e olhos em “planos” detalhados pelas palavras. A autora transporta o leitor para a vida de Ana Davenga, Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, Zaíta e compartilha os seus quotidianos. Como refere Heloísa Gomes no prefácio: «No livro estão presentes mães, muitas mães. E também filhas, avós, amantes, homens e mulheres – todos evocados em seus vínculos e dilemas sociais, sexuais, existenciais, numa pluralidade e vulnerabilidade que constituem a humana condição. Sem quaisquer idealizações, são aqui recriadas com firmeza e talento as duras condições enfrentadas pela comunidade afro-brasileira. A abrangência de tal problemática ultrapassa, decerto, o mundo negro, assim como transcende o dia de hoje. Os contos, sempre fincados no fugidio presente, abarcam o passado e interrogam o futuro. Sintomaticamente, são muitos e diversos os velhos e as crianças que os habitam. O passado é inevitavelmente implacável, o futuro, em geral duvidoso, certas vezes inexoravelmente negado.[...] A força simbólica de tal regressão física e emocional é de uma síntese irreparável».[3]
Posto isso, podemos perceber que em Vazante não ocorre o mesmo. As personagens que representam pessoas escravizadas não tiveram destaque relevante, não estando a sua individualidade e intimidade em foco. Os planos de maior destaque do filme ficam reservados ao drama do colono António. O sofrimento pela condição de exploração e vulnerabilidade ganharia intensidade se houvesse aproximação na vida destas personagens. Vazante contribui para olharmos outra vez para o passado que conhecemos, de violência e abusos, porém mantendo o distanciamento da realidade dessas pessoas. No afastamento das histórias de outras Felicianas, Natalinas e Luamandas, Jeremias não contribui de maneira activa para o combate das estruturas racistas ainda presentes nos nossos tempos.
O passado está em constante transformação no presente. A partir de novas análises e outros pontos de vista, ressignificamos e construimos novos sentidos para as memórias. Entendemos então a importância das produções que objectivam abordar temas delicados e complexos de nossa história. Novos encontros com situações passadas podem efectivamente contribuir para a reflexão de questões que estão muito presentes na nossa sociedade.
Entre as personagens do filme que merecem destaque, temos Feliciana, interpretada por Jai Baptista, que desempenha o papel de uma escrava abusada sexualmente pelo dono da fazenda, através da qual pode ecoar o mito da democracia racial no Brasil e as políticas de branqueamento, baseadas na falácia do racismo científico. O Brasil adoptou no final do século XIX e início do século XX políticas de branqueamento. A elite branca brasileira acreditava na sua superioridade racial e que em diversas gerações de miscigenação a população teria a cor da pele mais clara. Destacado por Djamila Ribeiro no seu livro Pequeno Manual Antirracista, a miscigenação foi forçada durante o período colonial, negando-se assim uma história de violência sobre a população negra.[4]
O papel de Feliciana retrata a história de milhares de mulheres negras brasileiras. A violência sobre os corpos negros é também tema discutido pela artista brasileira Jota Mombaça, a qual diz em entrevista disponível na Associação Cultural Videobrasil: «No caso do Brasil as políticas de embranquecimento produziram corpos negros como o meu. Embranquecidos, produzidos pela lógica da eugenia como política pública nacional».[5]
Para concluir, Vazante poderia ter explorado outros espaços que necessitam urgentemente de novas visões. Abordar a história do Brasil no período colonial é uma oportunidade para se repensar e actuar activamente nas estruturas racistas que permanecem até aos dias de hoje, com a atenção e responsabilidade política que o tema requer. O filme actualiza a violência que já conhecemos sobre os corpos negros, não se preocupando em apresentar a intimidade das personagens, como se fôssemos transportados para o Brasil de 1821 e seguíssemos calando os seres humanos escravizados. Representar o passado é uma forma e oportunidade de rever a nossa história.
É importante reflectir sobre o conflito entre a expectativa gerada pelo público e o que realmente o filme se propõe trabalhar, e as divergências que provocaram múltiplas discussões. No Brasil, um país marcado pelas desigualdades entre negros e brancos, local onde as marcas da escravidão estão longe de ser superadas, o filme opta por colocar em evidência o drama da personagem portuguesa na sua tentativa de gerar um filho com uma mulher branca, sem tratar de modo individualizado as personagens que representam negros escravos, os quais são silenciados ao longo da trama. Vazante, com todas críticas negativas em relação à representação dos negros no filme, incitou uma série de debates extremamente pertinentes. As questões políticas circundam o filme e os debates se produzem no seu entorno. As expectativas de um filme activista, com o contraponto para as narrativas instauradas sobre o período colonial, não são atendidas. No entanto, devemos perguntar se essa realmente era a intenção de Thomas, ou um desejo do público e da crítica para implicar essas questões. O facto é que o cinema brasileiro ainda tem muito espaço para explorar sobre a história do país.
[1] Daniela Thomas, Diretora de ‘Vazante’ explica as escolhas ousadas para alcançar maior rigor histórico em seu retrato do Brasil colonial. Globo Filmes, 2017.
[2] Vladimir Safatle, Para além da necropolítica. N.º 1 edições, 2020.
[3] Conceição Evaristo, Olhos d’água. Rio de Janeiro, Pallas, 2016.
[4] Djamila Ribeiro, Pequeno manual antirracista. São Paulo, Companhia das Letras, 2019.
[5] Jota Mombaça, Agora somos todxs negrxs?. São Paulo, Associação Cultural Videobrasil. 2018.
OLHAR—VER
Bostofrio: Où Le Ciel Rejoint La Terre
Inês Costa
O Pecado
Luís Miguel Martins Miranda
Quo Vadis, Aida?
Luís Miguel Martins Miranda
On abortion (Laia Abril, 2018)
Luciana Lima
Arthur Jafa, uma série de prestações absolutamente improváveis, porém extraordinárias (Arthur Jafa, 2020)
Roberto Leite
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
Avenida Rodrigues de Freitas, 265
4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020