[Filme]
Bostofrio: Où le ciel rejoint la terre
Paulo Carneiro, 2018
INÊS COSTA
Bostofrio: Où Le Ciel Rejoint La Terre é onde os montes e vales vão tão longe no horizonte que parecem tocar as nuvens, numa aldeia transmontana do concelho de Boticas, Paulo Carneiro foi à procura de histórias que sabia que faltavam ser contadas.
O subtítulo em francês não só anuncia a forma como o filme retrata a imaterialidade do lugar e a misticidade das gentes, mas também reflecte uma identidade portuguesa que começa no interior do país e se relaciona com a forte tradição da emigração portuguesa, algo que será explorado no próximo filme do autor.
Ao remexer no passado da sua família, o realizador apresenta-nos um filme que desenvolve um interesse particular sobre a figura misteriosa que nunca conheceu: o seu avô, um homem que nunca assumiu publicamente a sua relação com a avó de Paulo e o seu filho, pai do realizador, que não foi perfilhado.
O filme é estruturado por capítulos, uns mais breves que outros, que nos apresentam os poucos habitantes daquela terra transmontana. Bostofrio é um retrato digno e fiel não só da história particular de uma família, mas da realidade do próprio país. Entre os silenciosos vales, as inquietas e ruidosas chamas e a figura omissa do seu avô, o filme envolve-nos em questões pessoais, mas também políticas e sociais de uma geração não tão distante da nossa.
As primeiras imagens são longos planos dos vales e montes transmontanos, feitos de sons e silêncios, seguindo-se imagens do chão onde caminham as gentes de lá, com tamancas e socas tradicionais. A primeira cena do prólogo é das poucas em que o realizador está ausente do plano e que nos faz entrar no cemitério da aldeia, onde as pessoas que vimos passar se enfileiram viradas para a câmara e cantam uma estranha melodia, que reconheceremos no final do filme como a tradicional Dubadoura, interpretada pelo rancho folclórico de Beça, editada de trás para a frente. Algo de estranho se passa naquele lugar misterioso.
A TERRA
Ao longo do filme, sucedem-se as conversas do realizador com alguns dos habitantes da aldeia, começando pela Dona Casimira que, como quase todos os outros intervenientes, é filmada enquanto trabalha na terra. O registo visual do trabalho no campo é essencial na construção da narrativa e marca o fluxo da história. Carneiro acompanha-a enquanto ela lavra e pergunta-lhe incansavelmente o que ela sabe sobre a história da sua família. As respostas são evasivas, dando um retrato de alguém que, apesar de saber tudo, não quer falar de nada – como um vestígio do silêncio imposto pelo Estado Novo.
Estes vestígios da ditadura que durante 48 anos deixou Portugal pobre, rural, analfabeto e, acima de tudo, silencioso, ainda são visíveis hoje, especialmente nas aldeias. O isolamento que as zonas mais rurais e do interior do país sentiram durante o regime e no seu fim, com o desenvolvimento e a fuga para as cidades, sente-se na forma como estas pessoas se relacionam e como estão habituadas a comunicar. De uma forma geral é esta a primeira reacção de todos os entrevistados. Dentro das suas cabeças, a ideia de remexer no passado e falar das vidas de outras pessoas é algo que não devem fazer. Alguns, um pouco mais dispostos, vão-se abrindo ao realizador e as histórias vão saindo, ainda que a custo.
Bostofrio explora as interacções entre distintas gerações, em especial num contexto rural, dando um reflexo profundo e documentado sobre a pobreza que se viveu naquela altura e que aquelas pessoas ainda recordam vivamente. Em simultâneo, reflecte sobre o caráter machista da sociedade portuguesa da época e como essas duas questões se interligam directamente com o muito elevado número de filhos de pai incógnito em Portugal. Se, por um lado, a falta de educação sexual e falta de acesso a métodos contraceptivos fazia com que as mulheres engravidassem com maior facilidade, por outro, o machismo em conjugação com a pobreza, fazia com que os homens muitas vezes renegassem as suas responsabilidades e deixassem as mulheres em situações de precariedade extrema, tendo de trabalhar nas terras, se as tivessem, sustentar os seus filhos sozinhas e serem vítimas de preconceito social, por não serem parte de uma família normativa.
O FOGO
A poética e um nevoeiro sebastianista envolvem toda a narrativa do filme: desde a Dubadoura invertida, às referências literárias a Teixeira de Pascoaes, até à alusão literária do céu e do inferno e a terra transmontana que se situa entre eles. Em entrevista, Paulo Carneiro fala sobre como a literatura foi e é importante no seu processo de escrita e criação de um filme. Teixeira de Pascoaes e Miguel Torga, neste caso, foram a base de criação de um imaginário transmontano, saudosista, que acrescenta densidade ao filme e que, de uma forma cuidada e atenta, falam de uma portugalidade poética. Carneiro faz questão de mencionar que esta portugalidade é algo diferente das ideias nacionalistas e imperiais associadas ao orgulho em ser português. Trata-se de uma vontade em recuperar histórias, raízes e entender a terra e o território enquanto extensão do presente.
Duas figuras são personificações destas imagens poéticas que Paulo Carneiro traz para o filme: a avó e o avô.
A procura por conhecer a vida da sua avó, permite olhar para o papel da mulher no contexto rural português da década de 1950, a partir de diferentes temas e conversas, em torno da educação sexual e a sua influência nas gravidezes indesejadas, e na forma como, por oposição ao lugar do homem enquanto chefe de família, estas ocupavam um lugar secundário e marginal. A falta de acesso à escolaridade básica e a cuidados de saúde, numa sociedade católica e patriarcal, tem como consequência uma maior concordância com a superstição e o preconceito. Em várias passagens do filme, alguns intervenientes referem-se à avó de Carneiro como alguém que “tinha o diabo”, reflectindo o modo como era comum o aparecimento de psicopatias como depressão, ansiedade e outros diagnósticos, fossem rapidamente confundidos com bruxaria, por exemplo. Essa temática é explorada e imaginada através do cenário misterioso que une todo o filme, um nevoeiro denso e incêndios que ardem intensamente. A avó surge como figura que representa o fogo, o barulho, o movimento e a luta.
Contrariamente, a imagem desaparecida do avô, encontra-se nos momentos de pausa, de silêncio e de ausência. É importante notar que esta personagem, sendo de certa forma o protagonista, ou pelo menos a razão principal para existir a história, é na verdade uma imagem de vazio, alguém que não está. Não só o filme é sobre a procura e a descoberta sobre a vida do seu avô, como a sua ausência é materializada. A procura do realizador por fotografias do seu avô durante o filme é também um exemplo e uma lembrança constante desta ausência de materialidade. De facto, Carneiro nunca nos mostra por completo a fotografia do seu avô presente na campa do cemitério. Ela é fragmentada, como a própria história da sua família, e compõe os separadores de capítulos, dando ao espectador algumas peças desse puzzle que é a própria pessoa, o seu avô, Domingos Espada.
A fotografia é um instrumento desta dualidade de presença-ausência, real-fantástico e que é explorada através da fragmentação no espaço e no tempo do próprio filme. Tal como o puzzle das fotografias, a própria narrativa vai sendo construída, passo a passo, pessoa a pessoa, alternando entre as entrevistas e os longos silêncios de planos abertos da paisagem da aldeia transmontana.
Em entrevista, Carneiro fala-nos sobre a câmara enquanto uma arma que não era justo apontar apenas àquelas pessoas e por isso tentou sempre apontar a si também. Isso é notório na sua presença ao longo do filme, quando entrevista os habitantes da aldeia. “Eu faço filmes porque tenho questões” continua o realizador e fala também sobre os seus trabalhos futuros e como sempre fará filmes que tenham a ver com ele, com a sua vida e a sua identidade. Para ele, este filme é “uma busca de um lugar vazio, uma questão de identidade não só do meu pai, mas minha. (…) Tinha a completa noção de que estava a falar de um todo. Este filme é sobre mim, é sobre a minha família, mas é sobre um país todo, toda uma cultura, é sobre uma memória coletiva.”
Bostofrio é um filme particular, sobre pessoas particulares, que explora histórias muito maiores que elas próprias. Histórias com as quais nos relacionamos e que nos faz querer conhecer mais do nosso próprio país, das nossas gentes, do nosso passado e ensina-nos que uma pergunta simples carrega muitas camadas e muitas outras narrativas escondidas à espera de serem descobertas.
OLHAR—VER
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Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020