[Filme]
Diários de Otsoga
Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, 2021
JOÃO BERNARDO
Três actores, mais treze pessoas e cinco cães, dezasseis testes PCR, uma propriedade em Sintra e um país inteiro em confinamento. A fórmula de Diários de Otsoga é bastante simples. Existe uma ideia e, principalmente, uma vontade, mas não há guião, nem história. Se as personagens a trabalharam ou não trabalharam, tiveram uma infância porreirinha ou não pouco ou nada interessa. O desafio está em Carloto, Crista e João – actores e personagens – construírem um borboletário, partilhando a mesma casa, da qual não podem sair. Mas restam treze pessoas e os cães precisam de tomar banho. O marmelo apodrece e as melgas não deixam ninguém dormir em paz.
Com a súbita impossibilidade de realizar os outros projectos em que estavam a trabalhar, Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes não aguentaram a clausura imposta pela pandemia e, rodeando-se de caras familiares, viraram a câmara para a natureza e para o rotineiro. Essa ânsia por produzir de novo resulta, no filme, em espontaneidade, no interesse em filmar o que acontecer ou surgir, construindo por cima da deriva e do quotidiano. Otsoga não é, portanto, um lugar. É uma reflexão sobre a percepção de um tempo adulterado, sobre coexistir com outras pessoas e tentar escapar à estranheza deste período que todos vivemos. No decorrer invertido desse mês tão querido a Portugal, a confusão paira no ar. Mas se há algo que a pandemia nos ensinou foi que é possível encontrar beleza no vazio, em tudo o que é fugaz mas cheio de significado.
Em 2020 o mundo parou. Aos dias sucedem-se outros dias, alternando entre o efémero e a inércia, misturando-se na amargura de não ter um futuro tangível. Filmado no verão desse mesmo ano, o filme começa com os protagonistas a dançar ao som de Frankie Valli & The Four Seasons, mergulhados numa aura onírica de luzes fluorescentes, de alguma maneira presos a essa existência bucólica definida pelos limites da herdade. Até que, por baixo da sombra das borboletas, o proibido acontece: um beijo.
Desse beijo, no entanto, não existe consequência. É o esboço de uma ficção que nunca chega de facto a existir. O filme continua, obrigando-nos a retroceder nos dias. Trata-se de um diário invertido e começamos pelo fim. Desta maneira, conforme o espectador presencia cada dia anterior, ligações invisíveis e pedaços de informação soltos materializam-se à sua frente. Entre o tractor azul e o livro de Pavese, o filme surpreende-nos em contagem decrescente. À medida que os membros da equipa técnica são introduzidos surrealmente na vivência daquele espaço, tensões e preocupações vêm ao de cima: há e-mails que ficaram por responder, pequenos-almoços em crescendo, personagens que por protocolos de segurança se transformam uma na outra, uma piscina por limpar e um bebé por nascer. Esta transparência delineada pelos cineastas em conjunto com Mariana Ricardo – que partilha com estes os créditos do argumento – na verdade, desfoca a fina barreira entre o ficcional e o real. A improvisação, o humor e a colaboração estão sempre presentes, e nunca nos é dado por certo o que poderá acontecer a seguir. Em Diários de Otsoga, o processo torna-se o próprio resultado. A lente converte-se em espelho e a tela numa janela para um mundo de vinte e dois dias, onde não há restrições – excepto o término às vinte horas e trinta minutos, para um merecido descanso dos técnicos. De resto, o filme não pode parar.
Esta é a ordem proposta pelos realizadores: marcada pela anti-linearidade, pela procura da repetição, da suspensão e da descontinuidade. Porém, como espectadores, existe uma expectativa do linear, ancorada ao desenrolar de acontecimentos contínuo e sequenciado habitual dos filmes denominados mainstream. Perante um repentino estagnar do cinema, cara a cara com o isolamento e incerteza pandémicos, Miguel Gomes reflecte que o lugar do espectador na esmagadora maioria dos filmes feitos hoje é um espaço mais estanque, mais pré-determinado, atravessado por menos tensões e ambiguidades e consequentemente mais seguro, bastante mais controlador e sobretudo muito mais conformista e irrelevante. É, por isso, com frescura que experienciamos dois sentidos da narrativa possíveis, causando a estranheza de ver algo simultaneamente desafiante e divertido num filme empaticamente experimental.
No fundo, o cinema é também a arte de moldar o tempo e Diários de Otsoga tem plena consciência disso. É um filme que sabe que é um filme, é sobre fazer filmes e viver através deles. Contudo, neste meta-cinema o seu reconhecimento não o torna complexo ou barroco; pelo contrário, mostra-se simples, intimista, sem abandonar o sorriso pueril e atrevido ao qual a obra de Miguel Gomes desde cedo nos habituou.
O realizador David Cronenberg descreve o seu processo de fazer filmes como um diamante, no sentido de que cada faceta representa um filme diferente. Ao olharmos através de cada uma dessas facetas vemos o mesmo núcleo central do diamante – a experiência de vida do cineasta. Em Diários de Otsoga, identificamos também ecos da filmografia dos realizadores, que nos guiam até ao seu universo comum: o triângulo de personagens de Entretanto (1999), o huis clos de A Cara Que Mereces (2004), a espontaneidade de Motu Maeva (2014), um certo tropicalismo nostálgico que remete para Tabu (2012), e o reconhecimento de situações de Aquele Querido Mês de Agosto (2008) e As Mil e Uma Noites (2015). Também os actores e equipe técnica povoam este universo cinematográfico, cruzando-se neste filme como se se tratasse de uma reunião de família. As suas raízes encontram-se assim na amizade, na coexistência, e perante o medo de uma realidade utópica mostra-se simples e corajoso, como que um antídoto a este tempo. É um filme que sublinha que as limitações não são a antítese da criatividade, que na verdade estas possibilitam estruturas e territórios irregulares prontos a serem explorados.
No final voltamos ao início, desta vez com toda a equipa técnica a dançar. Por entre cervejas e cigarros, o calor humano dá luz ao cinema – é o ouroboros idílico da vida pandémica. Sabemos, enfim, que os casulos irão abrir e que as borboletas poderão voar.
OLHAR—VER
O Pecado
Luís Miguel Martins Miranda
Quo Vadis, Aida?
Luís Miguel Martins Miranda
Vazante
Felipe Argiles Silveira
On abortion (Laia Abril, 2018)
Luciana Lima
Arthur Jafa, uma série de prestações absolutamente improváveis, porém extraordinárias (Arthur Jafa, 2020)
Roberto Leite
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
Avenida Rodrigues de Freitas, 265
4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020