[Exposição]
Arthur Jafa, uma série de prestações absolutamente improváveis, porém extraordinárias (com Ming Smith, Frida Orupabo e Missylanyus)
Arthur Jafa, 2020
Fundação de Serralves
ROBERTO LEITE
ARTHUR JAFA, UM COLECTOR DE IMAGENS
Quatro meses antes de Derek Chauvin estrangular George Floyd, 576 anos depois do primeiro leilão de escravos diante do Infante D. Henrique em Portugal, a exposição de Arthur Jafa estreou no museu de Serralves. As imagens da violência policial e do tráfico de seres humanos poderiam fazer parte da exposição, talvez como uma das centenas de imagens no imenso painel de Apex Grid (2018) ou parte da composição de vídeos de Mix 1–4_Em constante evolução (2017). As composições de Arthur Jafa são uma narrativa visual da identidade do corpo negro no seu prisma norte-americano. Coleccionando e costurando imagens de contextos e autorias distintas, o artista aponta para um sentido transversal entre elas: como ser negro está intimamente ligado a uma resistência cultural e às violentas injustiças materiais e simbólicas do racismo.
Monster, 1988–2007, trabalho que abre a exposição, pode ser descrito como a imagem do cineasta, director de fotografia e artista visual norte-americano, vencedor do Leão de Ouro da Bienal de Veneza em 2019, que trabalhou com nomes como Spike Lee, Stanley Kubrick, Beyoncé e Jay-Z. Mas o auto-retrato de Arthur Jafa é, antes e também, a imagem de um homem negro com uma câmara apontada para um espelho e para o espectador que entra na sala. Monster é uma introdução, ou aviso, para o que dali em diante será uma imersão complexa sobre o corpo negro e o modo como o racismo o coloca como um corpo fora da normatização social.
Grande parte da minha conexão e dificuldade em escrever sobre a exposição pode estar ligada a esta obra. A câmara/espelho de Jafa apontada a mim, um brasileiro residente em Portugal, revelam-me várias histórias vividas e contadas. Histórias de violência quotidiana, de quem nasceu e viveu no país que já foi o maior território esclavagista das Américas e hoje vive no país que o colonizou. Como qualquer um colecciono memórias em imagens, mentais e físicas, que contornam a pessoa que sou.
Jafa é um coleccionador de imagens cuja natureza e origem são diversas: fotografias, desenhos, film stills, retirados de revistas, livros, arquivos públicos ou particulares. Este acervo pode ser visto na obra Picture Books (1990–2005/17), em que o visitante é convidado a consultar livros que carregam este gigantesco banco de imagens construído pelo artista. A selecção e organização das imagens acontece de forma afectiva, mas quando são colocadas lado a lado, passam a ter uma harmonia específica. As composições criadas pelas relações das imagens expandem-se em esculturas, vídeos, fotografias e colagens que ocupam os salões da exposição Uma série de prestações absolutamente improváveis, porém extraordinárias.
A nova ordenação é algo imperativo nas suas obras audiovisuais Apex e Love is the Message, the Message is Death. Estes trabalhos fazem parte do que Jafa chama de Entoação Visual Negra. A sua pesquisa centra-se na procura de um cinema negro para além da presença de negros produzindo filmes, atuando ou contanto histórias. Jafa procura uma estrutura cinematográfica formal que se aproxime de uma visão do mundo dos negros. Esta construção é feita através da montagem e da sua relação com a música afro-americana. Um exemplo disso é Apex, onde o espectador é colocado diante de 841 fotografias durante 492 segundos, um grande cenário iconográfico cadenciado por um som cíclico e hipnotizante. A vibração, característica marcante da música negra, é transportada para as imagens na montagem do vídeo.
Voltamos a ver esta entoação vibrante em Love is the Message, the Message is Death, justapondo imagens em grande velocidade rítmica que exige do espectador uma relação não convencional com o vídeo. As imagens fragmentadas constroem um quebra-cabeças fluido, no qual a organização começa a apresentar um novo sentido a partir das recorrências de formas e desdobramentos históricos. Um exemplo é a seguinte sequência: o vídeo, feito com um telemóvel, de um homem negro a ser espancado pela polícia norte-americana; negros lançando-se ao chão num movimento de dança; e um excerto do emblemático filme racista O Nascimento de Uma Nação de D. W. Griffith. Neste intervalo de oito segundos Jafa costura uma associação de imagens com cerca de cem anos de diferença e com intenções originalmente distintas. Faz uso do carácter líquido que elas possuem para nos mostrar como a dor e a glória dos negros estão implicadas no seu corpo e como este pode ser interpretado como exótico, místico, perigoso e violento.
Imagem a imagem, Arthur Jafa vai construindo um grande atlas visual que reverbera uma etnia, memória, tradição cultural e a reação do artista a esta ressonância. Jafa vive num mundo interligado onde a produção de imagens passou de poucas para biliões de pessoas. A comunicação via internet pelas redes sociais colocou a produção de imagens à mercê do consumo e produção simultâneos. Na internet, criar e publicar é um comportamento amplamente difundido e gera uma quantidade inédita de novas imagens todos os dias. Estes registos têm um papel importante na coleção de Jafa. Fazendo uso da estética do flagrante, amador e espontâneo, o artista marca um contexto contemporâneo e conecta-o ao passado. São vídeos feitos em telemóvel de um garoto negro a cantar, da desmedida violência policial ou de uma criança negra a dançar. Estas imagens, extraídas da internet, ganham força ao serem ligadas visualmente a imagens de um concerto de Nina Simone, dos protestos pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos e de Muhammad Ali a esquivar-se de golpes num ringue de boxe. São decisões compositivas que relacionam imagens de momentos distintos do passado, catalisando a memória social de uma cultura que resiste e luta.
É muito difícil passar incólume a um trabalho que se inicia na característica documental da imagem para construir a sugestão de alinhar passado e presente. A fabricada mentira da superioridade branca está documentada, também pelas imagens, como algo que existe e persiste há muito tempo. É na revirada de arquivos que, para mim, se inscreve uma das grandes forças do trabalho de Jafa: selecionar, reorganizar e redimensionar imagens para sugerir a subversão de um pensamento estrutural.
OLHAR—VER
Bostofrio: Où Le Ciel Rejoint La Terre
Inês Costa
O Pecado
Luís Miguel Martins Miranda
Quo Vadis, Aida?
Luís Miguel Martins Miranda
Vazante
Felipe Argiles Silveira
On abortion (Laia Abril, 2018)
Luciana Lima
Ama-San (Cláudia Varejão, 2016)
Rita Almeida Leite
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
Avenida Rodrigues de Freitas, 265
4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020