Betina dal Molin Juglair
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
Hilda Hilst
A fotoperformance pode ser compreendida como uma prática simultaneamente fotográfica-e-performática: não sendo apenas um ou outro, ou ainda uma simples adição, consiste numa verdadeira simbiose. Não sendo um mero registro de uma performance (que reduziria o âmbito do fotográfico), tampouco é um apontar despropositado da câmara a si mesma (o que reduziria a sua força performativa), uma das formas de perceber a fotoperformance é enquanto performance para a câmara. A intencionalidade aqui importa, porque se um dos sentidos da palavra performance é enquanto «algo para ser visto»[1], como nos lembra Jorge Glusberg, aqui o espectador por excelência é a câmara.
A ênfase no direccionamento do gesto performativo para o aparelho fotográfico traz problemáticas no campo de visibilidades, de relações de olhar e de poder. Afinal, a fotoperformance implica um modo consciente de colocar a si mesma, criar o próprio corpo enquanto superfície simbólica de discurso (performance) através da prática fotográfica. Ou seja: um meio de performance que adquire seu sentido quando direccionado para o aparelho; um meio de fotografia que adquire seu sentido apenas quando diante de um discurso de corpo não-instrumental. Estes dois discursos caminhando juntos: fotoperformance enquanto expressão de um corpo que quer comunicar-se e dizer de si através de uma câmara.
Podemos dizer que tanto a fotografia quanto a performance enquanto linguagens autónomas, encontraram certa resistência quando começaram a ser exploradas no campo artístico; meios revolucionários, ambos tensionaram modos tradicionais de expressão. No século XIX, a fotografia colocou em cheque modos de representação convencionais à época (pintura, desenho, gravura) por incluir um aparelho na mediação entre sujeito e mundo, suscitando uma série de questões sobre, por exemplo, objectividade e mecanização na arte, reproductibilidade, manipulação e massificação de imagens. Já a performance, na segunda metade do século XXI, subverteu o próprio sistema de representação: trouxe o corpo como veículo de uma expressão, que por definição é efémera. Ambas as linguagens acarretaram mudanças profundas de paradigmas de imagem e representação, e não é por acaso que a fotoperformance se tornou um meio tão utilizado entre artistas mulheres nos anos 70-80, considerando as potencialidades desta linguagem e o momento histórico de reivindicações e lutas feministas.
Com forte caráter contestatório, as práticas fotoperformáticas deste período sentem o frescor de uma nova linguagem que permite redesenhar o próprio corpo, a própria identidade, em quantas vezes e maneiras quiser. O meio fotoperformático também permite elaborar a identidade a partir do plural, porque a câmara permite registar a pessoa/objecto/cena de ângulos diferentes, de modos diferentes. Já não há um centro sólido, uma identidade sólida: há várias versões possíveis de si, que as imagens dão a ver. E, afinal, a quem são dirigidas estas imagens? Quem é o espectador?
Helena Almeida, Tela habitada, 1976.
Uma primeira resposta pareceria ser a câmara; porém, se considerarmos a relação entre câmara e artista, a situação complexifica-se. A artista opera a câmara num jogo de proximidade e afastamento, em que testa limites e possibilidades de si e do aparelho. Se os dois têm existência autónoma, pode dizer-se que há um campo em que convergem, que se mesclam. O aparelho, quando dá a ver algo da artista, no fundo opera também como um espelho rebelde porque não responde de modo automático, mas como uma técnica sofisticada que imprime algo de imprevisível e inesperado. Assim, na performatividade para a câmara, a artista é, a um só tempo, produtora e receptora da sua imagem: a fotoperformance traz o retorno do olhar para si, através de uma subjectividade manchada e percebida através da objectiva.
O universo de produção de imagens por muito tempo foi (e segue sendo) um espaço de propagação de modos de ver, conceber e retratar mundos a partir de uma perspectiva eminentemente masculina[2] (como já nos mostrou John Berger, Linda Nochlin, Filipa Lowndes Vicente e tantos outros). Neste sentido, a fotoperformance feita por artistas mulheres oferece um ponto de viragem radical: não mais renegadas a objecto do olhar de outro, mas produtoras e receptoras de uma visão própria, horizontal. É importante remeter ao legado de Bell Hooks na intersecção entre olhar e poder (e outras variáveis, como género, raça e colonialidade)[3]: o olhar (para o outro, para si, para representações de si feitas por outros) como gesto activo e corajoso; o olhar opositivo como acto de desafio e coragem na reivindicação de autonomia nos sistemas de representação.
Ver-se a si própria através da câmara, sujeito e objeto da própria imagem: após séculos, a artista ser a origem e destino de seu próprio olhar opera uma inversão no sentido arraigado de produção masculina de imagens. Podemos pensar a relação modelo e artista, sobretudo no acto de posar e das relações de olhar (e de poder, porque contíguas) que existem. A história da arte ocidental mostra-nos que estas eram posições marcadas pelo género: as modelos eram sobretudo mulheres, artistas eram maioritariamente homens. Uma tradição patriarcal que limitava os espaços permitidos às mulheres, onde podiam estar e o que olhar. Pensadas em contexto, as posições modelo/artista dão-nos algumas pistas para aprofundar as dinâmicas de poder e visibilidade nas relações de olhar e ser olhada.
Quando se toma a dinâmica implicada no posar, instauram-se importantes relações de olhares: o artista olha a modelo, que por sua vez também pode olhar de volta. Aqui, a posição de modelo parece-nos ser mais privilegiada em termos de consciência de visão que a do próprio artista: este olha para ver o contorno, o volume, a superfície, porque vê para fotografar, desenhar, esculpir ou pintar – e portanto o ver é meio para outro acto, é uma visão instrumental. Já a modelo repousa em frente ao artista com uma única intenção: ser vista. Ela tem a consciência do olhar que repousa sobre si e seu corpo, e no entanto sua própria visão é liberada de qualquer finalidade. Seu olhar pode recair sobre qualquer coisa, pessoa ou objecto – inclusive sobre o próprio artista, ou sobre si mesma – enquanto tem a consciência de ser olhada. Se artista e modelo são, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos da visão, activos e passivos do acto de olhar, o artista concentra-se apenas em ser sujeito activo de uma visão instrumental, enquanto a posição de modelo é privilegiada na consciência desta duplicidade permanente, de ser concomitantemente sujeitos e objectos de visão.
Na fotoperformance, a duplicidade sujeito/objecto em imagem é constante: o corpo é veículo de expressão artística, porém não num sentido existencialista de um descobrimento do eu. Trata-se de um eu performático, uma persona «construída e projetada sobre o mundo, moldada em relação a normas e expectativas sociais»[4], segundo Catharine Wood. Neste contexto, há a construção de um discurso, não uma afirmação essencialista ou pessoal da artista – embora seja factor relevante o facto de usarem o próprio corpo, o corpo de mulher-e-artista.
Os anos 70-80 marcaram um momento em que artistas mulheres utilizaram largamente o hibridismo: perpassaram inúmeros media (performance, fotografia, vídeo, pintura, escultura, desenho, poesia, body art, happenings) em obras contestárias tanto pelo conteúdo quanto pela experimentação. Neste universo de artistas híbridas que utilizam a fotoperformance, queremos destacar e relacionar duas: Lenora de Barros e Helena Almeida. São duas artistas que não se nomeiam fotógrafas ou performers, mas que têm boa parte de sua produção utilizando o meio fotográfico e que também incorporam outras linguagens. Em comum, têm o desenrolar de um gesto para e diante da câmara; em específico, Lenora de Barros tem a poesia, a palavra e o som (pela sua formação em linguística e sua proximidade com o concretismo brasileiro), e Helena Almeida tem o desenho e a pintura (pela sua formação em artes plásticas). Assim, nas obras apresentadas dentro do campo fotoperformático, a fotografia é imagem sobre a qual se imprimem outras expressões artísticas, escritas do eu em que seus corpos são veículos expressivos e em que, em Helena Almeida e Lenora de Barros, assumem aspectos singulares.
Lenora de Barros, Poema, 1979.
Nascida em São Paulo, em 1953, Lenora de Barros é poeta, artista visual, designer gráfica e curadora de fotografia. Pela sua formação em Linguística e proximidade com a poesia, Barros convive com o movimento concreto e neoconcreto, acompanhando a vida artística de seu pai, o modernista Geraldo de Barros (fotógrafo, desenhista, pintor, gravurista, designer gráfico e de móveis brasileiro). Outras das suas influências são: o movimento Fluxus, com sua reinvenção do corpo na arte através da performance e vídeo; Marcel Duchamp e a sua quebra de fronteiras nas artes plásticas, através dos ready-mades e dos seus auto-retratos performativos; Cindy Sherman e suas personagens e fotoperformances.
Aqui queremos evidenciar a obra Poema (1979), síntese da trajectória de Lenora de Barros e que referencia o próprio processo de escrita de um poema.
Poema é concretista para além do sentido tradicional da poesia, porque Lenora de Barros não é poeta num sentido tradicional. Transgride a forma poética porque não apenas ultrapassa os usos da linguagem para que ela tome corpo e uma forma visual no espaço em branco, mas também ultrapassa o visual e incorpora a dimensão da palavra à imagem. Nesta obra de Barros, é como se poesia e fotografia não só falassem sobre si, como também estivessem em simbiose e interferissem uma na outra, tendo o corpo da artista como combustível produtor e condutor do movimento.
Sobre Poema, afirma a artista em vídeo: «esse trabalho é de 1979, ele se chama Poema, embora não tenha nenhuma palavra. Mas aqui você tem toda a possibilidade de palavras. A ideia é justamente a língua, a língua idioma, a língua órgão fecundando a linguagem, tem uma coisa erótica, vamos dizer assim»[5]. O aspecto carnal, explícito, sensual da língua explorando uma máquina de escrever evoca uma série de conexões; aqui, aludiremos para uma vontade de sair de si, um desejo do corpo de explorar. Em Poema, a língua ultrapassa a boca, assim como a imagem ultrapassa a palavra e a fotografia. A língua-corpo é inquieta, explora outros espaços, quer atravessar os limites da moldura, assim como a imagem atravessa os limites da poesia e da fotografia. A língua-corpo busca trazer vida à língua-discurso, e fá-lo através da poesia e da própria imagem. É nítida a tensão entre corpo e técnica, o desejo e a domesticação, que no final transforma e mescla artista e máquina.
Vemos esse desejo de exterioridade na produção de outra artista, a portuguesa Helena Almeida, que utilizou largamente a fotoperformance ao longo da sua produção artística. Aqui, destacamos o período entre anos 70 e 80, marcado pelo hibridismo de linguagens em que a artista evidencia desdobramentos da pintura e desenho através da performatividade do seu corpo no e dos espaços (da tela, da câmara, do atelier) – em específico, falaremos da obra Tela Habitada (1976).
Apesar de Almeida conferir grande relevância à pintura na sua trajectória artística, não parece ser a visão o sentido privilegiado nas suas obras, mas sim o tacto, a sensibilidade do corpo. Não é por acaso que Isabel Carlos[6] ressalta a presença das mãos nos trabalhos de Almeida, mas não como referência ao gesto de pintar ou à destreza: as mãos (como em Tela Habitada) parecem ser veículos que puxam o seu corpo, que mediam a sua relação com o espaço, que abrem caminho para passagem, que perfuram a representação. A mão, afinal, é o órgão privilegiado do tacto, é a parte do corpo que inicia e comanda a descoberta do mundo.
Peggy Phelan escreve sobre as relações de corpo e imagem na obra de Almeida: «livre dos fardos ontológicos do Ser, a arte de Helena Almeida debruça-se sobre o que significa estar presente, ser vista, e o que significa desaparecer, seja na superfície do plano da imagem, seja num contexto histórico que se recusa a ver que estamos aqui»[7]. Este contexto histórico de que fala Phelan pode ser compreendido como o da falta de espaços e de visibilidade das artistas mulheres, a situação que herdamos e que tentamos mudar. Assim, a fotoperformance é não apenas uma expressão como também um atestado de existência: estou aqui, faço isto, olhe para mim com olhar atento e generoso, como eu mesma olho. Phelan pontua o papel da performance na formulação de uma concepção de identidade contingente das mulheres no contexto dos anos 70: «Uma vez libertadas do peso da ontologia, a identidade das mulheres podia ser entendida como contingente, na verdade uma matéria de performance. Umas vezes coercitiva, outras efémera, a performance parecia prometer maior liberdade criativa do que a ontologia biológica ou filosófica. Para as artistas feministas, esse argumento foi importante, pois sugeria que o papel há muito atribuído às mulheres na arte ocidental – o de objeto a contemplar – era a consequência de um guião histórico ritualizado, um guião que podia ser re-imaginado e transformado.».[8]
A fotoperformance enquanto linguagem traz consigo uma carga política inescapável, e para perceber estas camadas há que remeter ao contexto do seu desenvolvimento, observar as artistas e suas obras. Sob esta óptica de tensionar a tradição patriarcal da qual decorre o male gaze, de alargar e complexificar os modos de representação, a fotoperformance é uma expressão concomitantemente artística e política, porque alarga o campo do sensível. Se o sensível é a matéria e destino da arte, toda arte é política na medida em que o abala o sensível e que transforma o meio[9] – o que é precisamente o caso de Almeida e Barros e de tantas outras artistas como elas. O gesto aparentemente simples de posicionar a câmara para si mesma, performar o corpo e se fotografar, cria outras possibilidades de corpo, de imagem e de espectador. Vemos com atenção a mão de Almeida, a língua de Barros, o corpo de tantas artistas como veículos de expressão transformados em imagem. Por exercitar um olhar activo e opositor, a fotoperformance é uma linguagem que nos convida a questionar constantemente os nossos lugares em relações de poder nos sistemas de representação.
[1] Jorge Glusberg, A arte da performance (Trad. Renato Cohen), São Paulo, Perspectiva, 2005, p. 43.
[2] Embora se saiba que as experiências de gênero são múltiplas e não são limitadas a binariedades, a distinção feita aqui reflecte tendências historicas e socialmente desenvolvidas; não é, de forma alguma, um modo totalizante de olhar para as expressões de gênero (incluindo expressões artísticas de tais experiências), mas pretende perceber modos comuns de funcionamento e evidenciar suas contradições e contestações.
[3] Bell Hooks, Olhares negros: raça e representação (Trad. Stephanie Borges). São Paulo, Elefante, 2019.
[4] Catherine Wood, Performance in Contemporary Art, London, TATE, 2018, pp. 67-68.
[5] Lenora de Barros, in Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa109502/lenora-de-barros>. Acesso em: 28 de agosto de 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
[6] Isabel Carlos, Helena Almeida: Dias quasi tranquilos, Lisboa, Editorial Caminho, 2005.
[7] Peggy Phelan, «O espaço no limite da imagem». In Helena Almeida: O meu corpo é a minha obra, a minha obra é o meu corpo, Porto, Fundação de Serralves, 2015, p. 188.
[8] Ibid, p. 187-188.
[9] Ver Jacques Rancière, A partilha do sensível: estética e política (Trad. Mônica Costa Neto), São Paulo, EXO experimental, 2005.
Situação Crítica
Além do fotograma
Susana S. Martins
What do U Want 4 Xmas?
Vera Carmo
Da pandemia das imagens às imagens necessárias
Fernando José Pereira
Em defesa das imagens pobres
Hito Steyerl
O azul das pirâmides
Susana Lourenço Marques
Thriller, suspense e livros de fotografia
Celia Vega Pérez & Luis Deltell
Betina dal Molin Juglair
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
Hilda Hilst
Uma primeira resposta pareceria ser a câmara; porém, se considerarmos a relação entre câmara e artista, a situação complexifica-se. A artista opera a câmara num jogo de proximidade e afastamento, em que testa limites e possibilidades de si e do aparelho. Se os dois têm existência autónoma, pode dizer-se que há um campo em que convergem, que se mesclam. O aparelho, quando dá a ver algo da artista, no fundo opera também como um espelho rebelde porque não responde de modo automático, mas como uma técnica sofisticada que imprime algo de imprevisível e inesperado. Assim, na performatividade para a câmara, a artista é, a um só tempo, produtora e receptora da sua imagem: a fotoperformance traz o retorno do olhar para si, através de uma subjectividade manchada e percebida através da objectiva.
O universo de produção de imagens por muito tempo foi (e segue sendo) um espaço de propagação de modos de ver, conceber e retratar mundos a partir de uma perspectiva eminentemente masculina[2] (como já nos mostrou John Berger, Linda Nochlin, Filipa Lowndes Vicente e tantos outros). Neste sentido, a fotoperformance feita por artistas mulheres oferece um ponto de viragem radical: não mais renegadas a objecto do olhar de outro, mas produtoras e receptoras de uma visão própria, horizontal. É importante remeter ao legado de Bell Hooks na intersecção entre olhar e poder (e outras variáveis, como género, raça e colonialidade)[3]: o olhar (para o outro, para si, para representações de si feitas por outros) como gesto activo e corajoso; o olhar opositivo como acto de desafio e coragem na reivindicação de autonomia nos sistemas de representação.
Ver-se a si própria através da câmara, sujeito e objeto da própria imagem: após séculos, a artista ser a origem e destino de seu próprio olhar opera uma inversão no sentido arraigado de produção masculina de imagens. Podemos pensar a relação modelo e artista, sobretudo no acto de posar e das relações de olhar (e de poder, porque contíguas) que existem. A história da arte ocidental mostra-nos que estas eram posições marcadas pelo género: as modelos eram sobretudo mulheres, artistas eram maioritariamente homens. Uma tradição patriarcal que limitava os espaços permitidos às mulheres, onde podiam estar e o que olhar. Pensadas em contexto, as posições modelo/artista dão-nos algumas pistas para aprofundar as dinâmicas de poder e visibilidade nas relações de olhar e ser olhada.
Quando se toma a dinâmica implicada no posar, instauram-se importantes relações de olhares: o artista olha a modelo, que por sua vez também pode olhar de volta. Aqui, a posição de modelo parece-nos ser mais privilegiada em termos de consciência de visão que a do próprio artista: este olha para ver o contorno, o volume, a superfície, porque vê para fotografar, desenhar, esculpir ou pintar – e portanto o ver é meio para outro acto, é uma visão instrumental. Já a modelo repousa em frente ao artista com uma única intenção: ser vista. Ela tem a consciência do olhar que repousa sobre si e seu corpo, e no entanto sua própria visão é liberada de qualquer finalidade. Seu olhar pode recair sobre qualquer coisa, pessoa ou objecto – inclusive sobre o próprio artista, ou sobre si mesma – enquanto tem a consciência de ser olhada. Se artista e modelo são, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos da visão, activos e passivos do acto de olhar, o artista concentra-se apenas em ser sujeito activo de uma visão instrumental, enquanto a posição de modelo é privilegiada na consciência desta duplicidade permanente, de ser concomitantemente sujeitos e objectos de visão.
Na fotoperformance, a duplicidade sujeito/objecto em imagem é constante: o corpo é veículo de expressão artística, porém não num sentido existencialista de um descobrimento do eu. Trata-se de um eu performático, uma persona «construída e projetada sobre o mundo, moldada em relação a normas e expectativas sociais»[4], segundo Catharine Wood. Neste contexto, há a construção de um discurso, não uma afirmação essencialista ou pessoal da artista – embora seja factor relevante o facto de usarem o próprio corpo, o corpo de mulher-e-artista.
Os anos 70-80 marcaram um momento em que artistas mulheres utilizaram largamente o hibridismo: perpassaram inúmeros media (performance, fotografia, vídeo, pintura, escultura, desenho, poesia, body art, happenings) em obras contestárias tanto pelo conteúdo quanto pela experimentação. Neste universo de artistas híbridas que utilizam a fotoperformance, queremos destacar e relacionar duas: Lenora de Barros e Helena Almeida. São duas artistas que não se nomeiam fotógrafas ou performers, mas que têm boa parte de sua produção utilizando o meio fotográfico e que também incorporam outras linguagens. Em comum, têm o desenrolar de um gesto para e diante da câmara; em específico, Lenora de Barros tem a poesia, a palavra e o som (pela sua formação em linguística e sua proximidade com o concretismo brasileiro), e Helena Almeida tem o desenho e a pintura (pela sua formação em artes plásticas). Assim, nas obras apresentadas dentro do campo fotoperformático, a fotografia é imagem sobre a qual se imprimem outras expressões artísticas, escritas do eu em que seus corpos são veículos expressivos e em que, em Helena Almeida e Lenora de Barros, assumem aspectos singulares.
[1] Jorge Glusberg, A arte da performance (Trad. Renato Cohen), São Paulo, Perspectiva, 2005, p. 43.
[2] Embora se saiba que as experiências de gênero são múltiplas e não são limitadas a binariedades, a distinção feita aqui reflecte tendências historicas e socialmente desenvolvidas; não é, de forma alguma, um modo totalizante de olhar para as expressões de gênero (incluindo expressões artísticas de tais experiências), mas pretende perceber modos comuns de funcionamento e evidenciar suas contradições e contestações.
[3] Bell Hooks, Olhares negros: raça e representação (Trad. Stephanie Borges). São Paulo, Elefante, 2019.
[4] Catherine Wood, Performance in Contemporary Art, London, TATE, 2018, pp. 67-68.
[5] Lenora de Barros, in Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa109502/lenora-de-barros>. Acesso em: 28 de agosto de 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
[6] Isabel Carlos, Helena Almeida: Dias quasi tranquilos, Lisboa, Editorial Caminho, 2005.
[7] Peggy Phelan, «O espaço no limite da imagem». In Helena Almeida: O meu corpo é a minha obra, a minha obra é o meu corpo, Porto, Fundação de Serralves, 2015, p. 188.
[8] Ibid, p. 187-188.
[9] Ver Jacques Rancière, A partilha do sensível: estética e política (Trad. Mônica Costa Neto), São Paulo, EXO experimental, 2005.
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020