[Exposição / Livro]
Paisagens Transgénicas
Álvaro Domingues, 2021
GIULIANA ALMASIO
Um rebanho a coabitar o prado com placas solares. Uma perspectiva centrípeta de pilares que acolhem sob a sua vastidão uma marina de veleiros. Uma rotunda, tangenciada por betão, carros e edifícios, a hospedar uma escultura de morango gigante que solenemente pousa no solo. Não é sobre um futuro distópico, são as Paisagens Transgénicas de Álvaro Domingues. Em 2021 o autor publica um livro homónimo que materializa o projecto fotográfico descrito. As imagens e os ensaios presentes na publicação interrogam o sentido da paisagem enquanto código de reconhecimento do território (neste caso, português), propondo que os elementos compósitos que a constituem sejam caracterizados como transgénicos.
Geógrafo e doutorado em Geografia Humana, Álvaro Domingues é autor dos livros Território Casa Comum, A rua da Estrada, Vida no Campo, Políticas Urbanas I e II, Cidade e Democracia e Volta a Portugal. A publicação das Paisagens Transgénicas herda o formato já explorado nas publicações antecedentes, nos quais a escrita fomenta a componente fotográfica. Entretanto, quando apresenta ao público a instabilidade da paisagem portuguesa através da metáfora dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM), dispara o potencial didáctico das fotografias desse território. Portugal é um país rural? A paisagem rural é natural? O que é uma paisagem natural?
Definir a paisagem pode parecer algo intuitivo, simples, porque experimentá-la é sensorial. Ela tem cheiro, cor, textura, ruído. Ao nos posicionarmos no mundo, ganhamos uma paisagem. Por definição, a paisagem natural é formada pelos elementos da natureza que não sofreram intervenções humanas, em oposição àquela humanizada1. Álvaro Domingues regista, com o seu olhar de geógrafo, os enquadramentos do mundo coerentes com o seu discurso. A fotografia, solução imagética adoptada, ofusca alguns dos sentidos dessa experiência e amplia aquele da visão. Nela, vemos o que ele quer que seja visto.
No senso comum, a paisagem associa-se à natureza, à história e ao belo. Um passo atrás, à associação da beleza à paisagem, é a relação entre a filosofia (estética) e a geografia (paisagem). A noção de beleza associada à paisagem leva-me a crer que esse senso comum foi provocado pelo processo secular da arte propagar paisagens naturais e históricas, insuflando a noção de beleza ao que antes era natural ou quotidiano. As paisagens são motivo de pinturas e ilustram postais, transformando-se no cartão de visita de cidades. Mesmo após a quebra de paradigma da imagem analógica para a digital, as paisagens persistem enquanto pano de fundo dos ecrãs, publicidade de empresas de turismo e nas publicações no Instagram. Às 10h20min do dia 14 de fevereiro de 2023 entro no site turismodeportugal.pt e a primeira imagem que vejo é uma fotografia panorâmica, aérea, de montes verdes com um céu azul. Em seguida, vou ao site
visitporto.travel e vejo uma cena com pessoas sentadas a admirar a vista de Gaia para o Porto. A paisagem portuguesa propagada, ontem e hoje, enquadra-se nesses limites. Também como consequência disso, Portugal tornou-se um destino turístico. Entretanto, supondo a rota de um turista que viaja para o Porto de avião, aterraria na periferia, não no centro histórico. O primeiro contacto a ter com a paisagem dessa cidade pitoresca, provavelmente, seria mais semelhante às Paisagens Transgénicas do que a fotografia ilustrativa que viu no site onde comprou as passagens.
Álvaro Domingues diz que as paisagens são sismógrafos de alta fidelidade.2 Registam subitamente todas as alterações dessa sociedade globalizada. O que antes era categorizado entre paisagem rural, paisagem urbana e paisagem industrial agora se mistura. Perdem as linhagens fixas. A metáfora sobre os OGM qualifica a paisagem do território português como perturbadora, e que está a mudar a ordem natural das coisas. É uma paisagem em constante transformação. Também sugere que a incompreensão dessa nova paisagem seja motivada pela mistura entre os elementos mais antigos e aqueles que a globalização introduz, gerando uma dissonância cognitiva em quem a vivencia.
Portugal idílico
O exercício de fotografar e qualificar a paisagem portuguesa não é recente. Regresso ao ano de 1970, quando é publicado o livro Picturesque North Portugal, editado pela Bertrand, do autor Frederic P. Marjay com fotografias suas e de Platão Mendes. Como sugere o título, os textos e as reproduções fotográficas pretendem descrever e propagar as maravilhas desta região do país tão pitoresca e, inclusive, sagrada: o Norte contém o local de nascimento do fundador do reino e proclamador da independência de Portugal. A publicação da obra coincide com o ano da morte de Salazar, ditador e agente do Estado Novo (1933-1974), período também conhecido como Salazarismo.
Anos antes, em 1954, Frederic P. Marjay publica Salazar na Intimidade, obra que exalta com as mesmas ferramentas fotográficas e textuais, o carácter humano de Salazar, refletindo a preocupação com um Salazar mais familiar, dotado das sensações normais do homem comum.3 Um ano depois, Marjay lança a obra Oporto… Porto e Seu Distrito Suas Belezas e Seus Encantos (1955), um dos livros da Colecção Romântica que já no segundo parágrafo exalta a cidade do Porto como célebre, moderna, ampla, dotada de belas paisagens e monumentos históricos.
Nele, a ilustração fotográfica reforça o estereótipo pitoresco, indicando que essa característica é uma constante das suas obras. Aqui ressalto a importância das imagens, das fotografias, na construção de uma memória colectiva e futura. Em todos os casos citados, Frederic P. Marjay mantém o carácter apologético ao propagar a imagem (enquanto fotografia que simboliza uma ideia) dos assuntos abordados. Dizendo isto de outra forma: o enquadramento das suas obras exclui o Portugal fantasmagórico, empobrecido e ignorante, como o regime salazarista promoveu. Mais uma vez em conformidade com a ditadura, Marjay ignora a realidade portuguesa.
Portugal pitoresco vs. Portugal transgénico
Embora as Paisagens Transgénicas tenham uma legibilidade clara, vêm acompanhadas de uma arqueologia proposta pelo autor. Álvaro Domingues afirma que a paisagem está directamente associada à identidade de um país. E nessa construção identitária que reúne um sentimento comum, estão presentes os mitos, as tradições, o sangue e a terra, a raça.4 A sismografia da paisagem, que é a sua qualidade para as alterações que o mundo globalizado, provoca nas pessoas a sensação daquilo que já estava nela ser melhor reconhecido do que aquilo que chega de novo. Domingues considera que esse ganho é recebido como uma intrusão. O exótico seria lido como um ser parasita, não simbiótico. A novidade é frequentemente percebida como um estrago ao que já havia na paisagem. Descaracteriza, contribuindo para a perda da autenticidade de um tempo primordial. O novo que a globalização introduz seria estéril de História. Só arruina o passado pitoresco, mítico e belo que a propaganda do Estado Novo tanto fez para criar raízes na mentalidade portuguesa.
A publicação Picturesque North Portugal (Marjay, 1970) foi uma das ferramentas do Salazarismo para a disseminação do tal senso comum de um Portugal pitoresco. Em 2021, Álvaro Domingues apresenta o seu contraponto, ou antídoto, a esse desserviço de algumas décadas: Paisagens Transgénicas. Ao comparar essas obras, a princípio, nota-se um ponto de encontro na opção pelo formato de livro para documentar a paisagem de Portugal, através da escrita e fotograficamente. No caso da primeira obra, o projecto estende-se para além desse formato. As imagens recolhidas por mais de uma década fizeram parte de uma exposição fotográfica na Bienal de Fotografia do Porto em 2021. Além do objecto e da experiência expositiva, o projecto reside também no site do Museu da Paisagem, viabilizando não só a democratização ao acesso dessa obra crítica como também oferecendo outro formato de visualização das suas componentes imagéticas e textuais. É um projecto crítico nos seus conteúdos e nos formatos que assume. Regride ao fotolivro, ironiza e equipara-se às soluções de propaganda do Estado Novo. Ao mesmo tempo recorre a uma solução digital numa morada que a geografia desconhece. Em conjunto, os formatos se potencializam para propagar o questionamento acerca da paisagem e do território português, confrontando directamente o Portugal romântico das fotografias difundidas por Frederic P. Marjay. Os múltiplos formatos de promoção das Paisagens Transgénicas propõem, isoladamente, uma visualização diferente desse acervo, doando a instabilidade característica dos transgénicos não só às paisagens como também para a apresentação do projecto.
Embora em ambos os casos haja concordância na materialização de um livro para a divulgação da informação, a característica principal dessa interacção é a diferença elementar entre as partes. A intenção dos autores ao retratar a paisagem portuguesa é o que desassocia essencialmente a natureza dessas duas publicações. Em Paisagens Transgénicas lê-se que na cultura do senso comum, ao contrário das artes, domina o conservadorismo, uma espécie de crença que as paisagens são para sempre (Domingues 2021, 23). Nas obras mencionadas de Frederic P. Marjay de 1955 e 1970, embora utilize artifícios artísticos, a paisagem é fotografada para reforçar o conservadorismo. Ele perpetua o “senso comum” mencionado por Álvaro Domingues.
Sendo o artificial o que é manipulado pelo ser humano e o natural o que provém da natureza, as Paisagens Transgénicas propostas por Álvaro Domingues expõem uma relação reiterada entre a artificialidade e a natureza. A agricultura, o paisagismo topiário e os animais domesticados são exemplos de natureza intervencionada pelo ser humano. Nesse sentido, algumas das fotografias de Picturesque North Portugal também podem conter vestígios de paisagens transgénicas. Reforçando a ironia, apesar do recorte pitoresco, as fotografias urbanas e industriais de Frederic P. Marjay emprestam esse caráter de algumas das fotos de Álvaro Domingues. Entretanto, uma fotografia de paisagem, transgénica ou pitoresca, alinha-se mais facilmente com o onírico do que com a realidade. O alicerce da fotografia é a simulação do que é retratado. A priori, ela falsifica o que a percepção da paisagem permite. Nos livros de Frederic P. Marjay, a fotografia pretensiosa mascara-se como documento. Nas fotos de Álvaro Domingues, o retrato do natural e artificial corriqueiro esbarra na fantasia. Aqui a fotografia empata a disputa. Isto é, ambos são beneficiados com o uso dessa solução imagética.
OLHAR—VER
O Pecado
Luís Miguel Martins Miranda
Quo Vadis, Aida?
Luís Miguel Martins Miranda
Vazante
Felipe Argiles Silveira
On abortion (Laia Abril, 2018)
Luciana Lima
Arthur Jafa, uma série de prestações absolutamente improváveis, porém extraordinárias (Arthur Jafa, 2020)
Roberto Leite
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
Avenida Rodrigues de Freitas, 265
4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020