A POSSIBILIDADE DA IMPOSSIBILIDADE (DE NOVO)
Fernando José Pereira
Comecemos por uma explicação necessária. Este é um texto iniciado em 2019, muito longe, portanto, da actual situação que nos encontramos a viver. Não tem, por isso, qualquer relação com ela, para lá da utilização da palavra pandemia. Decidimos manter a palavra por uma questão de coerência. Apesar de tudo o que é aqui afirmado, que bom seria termos pela frente uma pandemia de imagens… só.
Uma vez que vamos falar de imagens, comecemos, então, com duas metáforas visuais. Uma primeira, que se pode visualizar a partir de uma situação por todos conhecida e experienciada: o olhar distraído pela janela lateral do automóvel enquanto ele circula a uma velocidade normal numa autoestrada. Uma segunda, que se liga ao novo imaginário ecológico: um aterro sanitário. Vai-se construindo com o acumular de detritos que, assim, vão preenchendo um espaço antes vazio. No final do preenchimento tudo é coberto e relva é plantada, dá-se então uma espécie de metamorfose: a imagem dos detritos transforma-se em paisagem “natural”.
A temporalidade comprimida que hoje governa as nossas vidas potencia também uma nova forma de lidar com as imagens. Por um lado, a voracidade tecnológica do digital tem acrescentado camadas operativas às competências do fazer das imagens no sentido da sua generalização, ao mesmo tempo que, dada a sua facilidade, as massifica. Por outro lado, a falta de tempo e o elevado número de imagens produzidas coloca-as em situação complexa e difícil. A equivalência a ser efectuada será, por isso, sempre em torno da relação entre o seu número e a sua difusão. Nada mais efectivo, nos nossos dias, que a preocupação constante de fazer imagens: imagens de nós próprios, imagens dos outros, imagens da natureza, imagens abstractas, imagens de tudo. Cada um de nós produz as imagens que entende, livre das preocupações selectivas e do consequente tempo necessário ao processo. As imagens formam-se, assim, numa espécie de livre arbítrio de significação em que nada é oposto à sua produção. Bem pelo contrário; têm o apoio, por vezes mais discreto, em outras totalmente explícito, de toda uma parafernália tecnológica que ao aperfeiçoar automatismos cada vez mais sofisticados tentam substituir-se activamente à competência e ao olhar, tornados, assim, desnecessários e, talvez, obsoletos.
A primeira metáfora que propusemos, a da janela do automóvel ganha, assim, uma dimensão totalizadora, completamente exterior às próprias imagens, concentrando-se, acima de tudo, na sua produção. Não interessa para nada a incursão imersiva nas próprias imagens, trata-se, antes, de uma canibalização delas próprias por uma lógica que lhes é absolutamente exterior: aquela que as conduz à condição de coisa que passa a enorme velocidade. A velocidade contém no seu âmago a dupla condição essencial de uma temporalidade acelerada e de um espaço em constante luta pela sua afirmação e que, contudo, não consegue escapar à precariedade absoluta.
As imagens passam e nada fica. A retenção da sua corporalidade imagética, da sua aparência como permanência de uma certa porção de realidade desvanece-se na instantaneidade a que se encontram sujeitas. E, contudo, a velocidade do seu próprio arrastamento, dos restos e dos rastos que deixam, produzem uma outra forma de entender as imagens e a realidade: acima de tudo, em amplitude alargada da necessária atenção que, obviamente, falha ao ser confrontada com a torrente a que se encontra sujeita. Mas é nesses restos, cada vez mais reduzidos à sua efemeridade temporal, que se apostam todas as potencialidades para as imagens do nosso tempo. Já quase que não na possibilidade contemplativa de uma deriva ao longo da imagem (embora esta seja da maior importância, como veremos à frente), mas numa espécie de blinkering constante que a retira do universo próprio das imagens para a inscrever noutra dimensão imagética que lhes é absolutamente alheia e que, contudo, se afirma como definidora dessa nova condição em aparente relacionamento exclusivo. Trata-se de uma espécie de ruína da própria imagem, não no sentido benjaminiano mas antes no de uma outra possibilidade que, pela falta essencial da componente temporal, não chega a afirmar-se… Passa. Simplesmente.
É a esta situação que chegaram as imagens que produzimos em massa no nosso tempo sem tempo. Esta nova produção imagética requer reflexão aprofundada, mais não seja, por parte dessa actual e pequeníssima parcela dos produtores de imagens que se interessam inequivocamente por elas próprias: os artistas. Cabe a estes uma espécie de responsabilização social de resistir (negativamente, diria Adorno) a esta situação. Até porque está em jogo a sua própria sobrevivência enquanto produtores de imagens, externos à torrente e ao manancial contínuo do blinkering digital. Enquanto o manancial se afirma na passagem, as imagens dos artistas (pelo menos algumas, de alguns), afirmam-se, antes, na paragem.
Dizia, com acerto, há uma década atrás T. J. Clark no seu livro The Sight of Death: An Experiment in Art Writing, quando se referia a imagens: «deveriam trazer consigo a possibilidade de dificuldade, profundidade e resistência genuínas».[1] Estas são condições absolutamente exteriores à ideia apressada de passagem, à metáfora do automóvel. São, antes, posicionamentos que reclamam a atenção e o tempo necessário.
Sejamos claros, a ideia de pandemia das imagens só é justificável pela inexistência da sua permanência temporal. Tanto ao nível da produção como da recepção. O que parece ser mais importante não é a qualidade, mas a quantidade e, por isso mesmo, perdeu-se uma das mais necessárias condições para que as imagens sejam produzidas e fruídas: a sua condição selectiva. Sem a selecção, a construção pandémica forma-se inevitavelmente. Relembremos a noção de um pan-sistema: é uma forma de actuação que pode ir da governação às doenças, como agora experienciamos duramente, e que tem como principal característica a ocupação global do tempo e do espaço de tal forma, que, por ser total, não permite o ajuizar da sua dimensão. O todo transforma-se então no não existente, exactamente por não haver opções de externalidade.
Aquilo que designamos como pandemia das imagens refere-se a esta dimensão trágica das imagens em contínuo falhanço de si próprias. Imagens que não têm sequer assegurada a sua existência enquanto tal, porque a sua condição fundacional se transfigura quase imediatamente em condição de desaparecimento. A noção debordiana da imagem que forma o espectáculo é, assim, completamente ultrapassada por esta condição já pós-espectacular em que a dimensão da imagem é ela mesma sinónima de um rasto que já não consegue ser corporizado, antes, fugazmente visualizado. E, contudo, continuamos a consumir desenfreadamente os rastos das imagens que nos chegam a todo o momento. Mas este é um paradoxo que deve ser desmontado. Utilizemos, a título de exemplo, as inúmeras séries televisivas que invadem diariamente os também inúmeros canais que hoje, quase todos, possuímos. Apesar do que temos vindo a afirmar aqui, sabemos bem que algumas têm uma permanência muito alongada chegando, nos casos mais extremos, a mais de uma década. A questão que podemos colocar de início é que a imagética destas se vai repetindo infinitamente e, no entanto, continuamos a ver. Então o que nos “agarra” a estas imagens sem corpo? É exactamente o seu corpo sem imagens. O argumento, quer dizer, as palavras. O paradoxo torna-se então evidente, apesar de quase invisível: será o anacronismo das palavras com a sua dimensão semântica aquilo que assegura a possibilidade de existência fugaz dos rastos das imagens?
1 Rui Manuel Vieira, Vivre et Morrir, série de 8 desenhos (grafite sobre papel, 70 × 55 cm), 2020
Uma exposição realizada o ano passado, assinada pelo artista brasileiro Rubens Mano, colocava esta questão de forma muito pertinente: uma grande parede branca ocupada na totalidade com um longo texto. Se nos aproximássemos, contudo, verificávamos que o texto era constituído por letras desenhadas manualmente a grafite. O artista colocava-nos perante um enigma: tratava-se de uma imagem (um desenho) ou um texto. Será, de facto, um enorme desenho, mas que, por vontade própria, não nos conduz a nenhuma imagem, mas aos significados construídos pelas próprias palavras. É a partir destes que construiremos as imagens que quisermos. Neste caso, encontramo-nos num território distante dos rastos da metáfora do automóvel. Aqui, a atenção exigida, tanto ao nível do fazer como da recepção é máxima. Não se trata já de uma visão fugaz, antes, de um investimento temporal na obra que conduz o espectador para a exterioridade da impaciência generalizada. Para o território das temporalidades minoritárias e alargadas que reclamam o tempo como exigência reflexiva para as obras. Talvez este seja um primeiro exemplo do que tentaremos definir como a possibilidade utópica das imagens necessárias.
Um outro bom exemplo é o livro do fotógrafo Eduardo Brito East ending. Neste, uma reacção excessiva de um personagem perante a possibilidade de ser fotografado vem chamar a atenção para o incómodo do excesso das imagens e da facilidade com que aparecem. Mas, também, para a necessidade de outras imagens, de outras formas de as realizar e corporizar.
O que poderá ser, então, o que hipoteticamente designaremos como imagem necessária? Antes de mais, e por razões de óbvia negatividade (já aqui tocámos no assunto adorniano), é uma imagem que deliberadamente se ausenta. Que se remete a uma espécie de silêncio, só que cromático. Uma sombra que a coloca em posição apagada. Sobretudo, uma imagem que potencia o enigma. Uma imagem, então, que comporte uma ideia utópica de exterioridade à pandemia pois tem a absoluta consciência de que é necessária. Uma imagem “inexterior” como poderia dizer Jacques Lacan.
A necessidade das imagens no nosso tempo é desajustada e artificial, e daí terem perdido o seu valor, o que torna tão necessárias as imagens necessárias. No livro do Eduardo as imagens são discretas, sombrias, não atraentes, talvez até deceptivas, mas estas são, afinal, outras características que as afastam da amabilidade generalizada da imagética do nosso tempo e por isso, também, necessárias. Tal como a obra do Rubens Mano, também neste livro, são as palavras (sempre o foram) que remetem para uma visualidade e que, dessa forma, libertam as imagens do peso transparente da comunicação. As imagens necessárias são, por isso, opacas por inerência. A visualidade das palavras encarrega-se, desta forma, de operar uma espécie de transferência de território. Voltemos então ao livro: a cena da fotografia ofensiva é descrita com tanto rigor visual que dispensa a fotografia, que, assim, consegue sobreviver sem essa necessidade narrativa para se concentrar no que é importante às próprias imagens, ou como diria Barthes, no seu punctum. Refere a este propósito o filósofo alemão Byung-Chul Han: «Ao contrário do shock (benjaminiano), o punctum (barthiano) não grita. O punctum ama o silêncio, conserva o segredo. Apesar do seu silêncio pronuncia-se como ferida. Uma vez que se aboliram todos os significados, todas as intenções, todas as opiniões, todas as valorizações, todos os juízos, todos as encenações, todas as poses, todos os gestos, todas as codificações e todas as informações, o punctum revela-se como um resto permanente, como um resto que entoa a sua canção e nos consterna. O punctum é o restante resistente que fica após a representação, o imediato que se subtrai à transmissão por meio de sentido e significação; é o corporal, o material, o afectivo, o inconsciente; é mais, é o real que se opõe ao simbólico».[2]
Encontramo-nos, portanto, perante um confronto entre a visualidade das palavras e a invisualidade, chamemos-lhe assim, das imagens. Entre o simbólico da linguagem e a opacidade do real.[3] Imagens inoperativas e, por isso mesmo, despojadas da gritaria comunicacional, habitadas pelo silêncio, necessárias. As imagens que o Eduardo nos mostra são silenciosas, mudas, porque deliberadamente se auto-desactivaram da função ilustrativa.
Igualmente, no conjunto de desenhos do artista Rui Manuel Vieira estas questões são reflectidas e desenvolvidas de um modo exemplar. O processo é, também neste caso, absolutamente selectivo. O que se inicia como uma imagem aparentemente descritiva, vai passar por todo um fazer desconstrutivo e de rarefacção. O seu final tem como resultado duas imagens que cabem, também, na categoria utópica das imagens necessárias. Nos desenhos finais do conjunto restam apenas duas palavras – extraordinaire e collective – uma em cada folha, nada mais. Apenas a palavra desenhada a grafite a desafiar, de novo, a ambiguidade. A operação integra-se por inteiro na condição de inoperatividade agambeniana e, apesar disso, ou, talvez por isso, os desenhos afirmam a sua integridade enquanto tal, longe de qualquer ilusão ilustrativa ou representativa, apenas desenhos. Que imagens conseguiremos formar para cada uma delas? Todas as que quisermos. Outra vez.
Um outro, e talvez decisivo, exemplo é a obra de Steve McQueen End Credits (2012–2016). Uma obra politicamente empenhada e, como tal, com significados fortes. Construída como homenagem ao cantor negro Paul Robeson, perseguido pelo McCarthysmo nos anos 50 americanos por suspeita de ligações ao Partido Comunista. Foi, por essa razão, completamente proibido de actuar e de editar discos. Uma situação que McQueen, ao concentrar-se neste caso, pretende que seja alargada, obviamente, a muitos outros que se conhecem desta época negra da história americana. O que é mostrado na obra é a totalidade dos documentos libertados para o domínio público, passados os 50 anos de confidencialidade, o famoso top secret.
A obra constitui-se, assim, como um longo end credits em que os documentos passam continuamente em scroll tal como em qualquer final de filme e que é, também, um exercício de duração (componente decisiva do tempo) nas suas quase treze horas de imagens, às quais se acrescentam as quase dezanove horas de texto lido, portanto, de som, provocando, desta forma, uma disruptiva relação imagem/palavras na duração do loop. Trata-se, uma vez mais, de um exercício que nos solicita, enquanto público, uma atenção que se coloca de forma muito longínqua relativamente à impaciência generalizada das imagens que analisámos inicialmente neste texto e para as quais utilizamos o adjectivo de pandémicas. Já não se trata de um rasto que se remete à instantaneidade maquínica do tempo, antes, de uma longa maratona… assim decidida e, portanto, deliberada.
Num texto importante, o filósofo inglês Peter Osborne refere-se a uma possibilidade para as imagens resilientes como sendo, e citamos, «super boring»,[4] quer dizer, em que o aborrecimento é, visível e deceptivo. A obra de McQueen demonstra a sua enorme capacidade interventiva, de novo, na quase impossibilidade de leitura (muitas páginas encontram-se completamente truncadas), mas, sobretudo, nos diálogos entre as duas vozes que nos vão fornecendo os dados (as imagens) através das palavras que são ditas.
Esta é uma característica que nos interessa como forma de resistir. O alongar do tempo, ainda por cima assíncrono, como na obra de McQueen, vem colocar questões da maior importância sobre o significado da persistência do tempo na obra de arte e, sobretudo, da sua intrínseca necessidade. As imagens necessárias necessitam do tempo necessário. No livro já citado de Peter Osborne o filósofo escreve: «a obra de arte é sempre contextual e incorpora necessariamente parte do sentido projectado pelas suas condições de recepção no interior da lógica da sua produção».[5]
Mas então qual o porquê das imagens, aqui, hoje, num tempo sem tempo?
Voltemos, agora mais detalhadamente, à noção de inoperatividade de Agamben. Esta ajuda-nos a entender esse porquê: pela desactivação da operatividade que lhes é tradicionalmente atribuída e, como tal, pela transformação da sua normatividade ao tornarem-se utopicamente anormativas.
A segunda metáfora que propusemos no início deste texto vai, assim, ganhando forma. De camada em camada o lixo acumulado (a pandemia das imagens) vai, aos poucos, operando a acção agambeniana da inoperatividade. Diz o filósofo que a cadeira vazia do poder e da glória simbólica se afirma, por falta de elementos para a ocupar, como inerentemente inoperativa. A proximidade do grau zero em que as imagens se encontram corporizam na perfeição este vazio que, contudo, é contabilizado aos milhões. Todos os dias são produzidas dezenas de milhões de imagens e, no final, nada resta… apenas os seus rastos difusos que se vão acumular e, ao fazê-lo, transformar a paisagem. A metáfora do aterro sanitário torna-se por isso importante pois permite o entendimento da alteração aqui proposta. Talvez as imagens necessárias sejam aquelas que são formadas pelos visitantes do jardim plantado e nascido em cima das camadas de lixo e que, sentados num qualquer banco, olham a paisagem e imaginam as imagens que quiserem. Talvez a imagem necessária seja, antes de mais, uma utopia da própria imagem, pela impossibilidade de a corporizar. A materialização de qualquer imagem dita necessária teria sempre um pendor moralista que não queremos para aqui chamar. Ao invés esta constitui uma activa introdução no território utópico das possibilidades em aberto.
Uma exposição iniciada em Fevereiro de 2020 e interrompida pelo actual surto pandémico (não das imagens) tinha como título algo que se aproxima destas constatações: Have you seen a horizon lately?.[6] Mas esse horizonte só pode ser visto do cimo do aterro. A inoperatividade introduzida nas imagens que se podem produzir mentalmente nesta condição é fundamental à sua existência como necessária. Quer dizer, necessitamos todos de imagens, mas não temos necessidade nenhuma da necessidade que nos querem impor como imagem.
Outro exemplo, pessoal: uma máquina de filmar comprada em Budapeste. Objecto magnífico e ansiado. Obsoleto. Chegado ao atelier, a curiosidade leva à abertura da máquina e, qual o espanto, está todo um filme lá dentro. As imagens que foram sensibilizadas pela luz, ficaram completamente queimadas pela mesma luz que as eliminou ao serem expostas depois da abertura do aparelho. Que imagens lá estariam? A criação de um filme tentará responder a esta pergunta impossível: mas uma coisa é certa, poderão lá estar as que se quiser… e assim vai ser. Estas são, por isso, também, as imagens necessárias.
Toda esta situação se pode inscrever na importante constatação de Agamben a este propósito. Refere o autor italiano: «Um exemplo vai permitir esclarecer como devemos entender esta “operação inoperativa”. O que é, aliás, um poema, senão aquela operação linguística que consiste em tornar a língua inoperativa, em desactivar as suas funções comunicativas e informativas, para a abrir a um novo possível uso? Ou seja, a poesia é, nos termos de Espinosa, uma contemplação da língua que a traz de volta para o seu poder de dizer… Mas, em todo o caso, trata-se de uma operação que ocorre na língua, que actua sobre o poder de dizer. E o sujeito poético é não o indivíduo que escreveu os poemas, mas o sujeito que se produz na altura em que a língua foi tornada inoperativa, e passou a ser, nele e para ele, puramente dizível».[7]
Depois das palavras de Agamben nada melhor para terminar este texto que o recurso a um outro exemplo do que poderemos continuar a designar utopicamente como imagem necessária: o “organetto”, espécie de instrumento musical inicialmente projectado e desenhado por Leonardo e nunca terminado até muito recentemente. Mário Azevedo e uma equipa de especialistas de uma Universidade holandesa conseguiram dar corpo ao objecto. Trata-se finalmente de um instrumento que se pode tocar. E, contudo, este instrumento não produz qualquer som. A imagem imaginada de um músico a operar o instrumento e a não produzir qualquer som é uma imagem necessária pois nela estão contidos todos os sons e imagens que lhe queiramos associar. A operação inoperativa é aqui, outra vez, tornada fundamental.
A possibilidade da impossibilidade (de novo).
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4
3
5
2 Rubens Mano, versão-palavra, grafite sobre parede (desenho mural), 2019
3 Eduardo Brito, East Ending (imagem do livro), Pianola, 2017
4 Steve McQueen, End Credits, instalação vídeo, com som, 2012–2016
5 Mário Azevedo, (construtor, Reijnier Kloeg), Organetto, objecto sonoro, 2016
[1] T. J. Clark, The Sight of Death: An Experiment in Art Writing. Yale, Yale University Press, 2006.
[2] Byung Chul Han, A Salvação do Belo. Lisboa, Relógio D´Água, 2016.
[3] Aqui, obviamente, no sentido lacaniano dos termos.
[4] Peter Osborne, Anywhere or Not at All – Philosophy of Contemporary Art. London, Verso Books, 2013.
[5] Ibid
[6] O título da exposição Have you seen a horizon lately?, no Museum of African Contemporary Art Al Maaden em Marraquexe, é uma referência a uma música de Yoko Ono.
[7] Giorgio Agamben, «Arte, Inoperatividade, Política», in Política, Crítica do Contemporâneo. Porto, Fundação de Serralves, 2007.
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A POSSIBILIDADE DA IMPOSSIBILIDADE (DE NOVO)
Fernando José Pereira
Comecemos por uma explicação necessária. Este é um texto iniciado em 2019, muito longe, portanto, da actual situação que nos encontramos a viver. Não tem, por isso, qualquer relação com ela, para lá da utilização da palavra pandemia. Decidimos manter a palavra por uma questão de coerência. Apesar de tudo o que é aqui afirmado, que bom seria termos pela frente uma pandemia de imagens… só.
Uma vez que vamos falar de imagens, comecemos, então, com duas metáforas visuais. Uma primeira, que se pode visualizar a partir de uma situação por todos conhecida e experienciada: o olhar distraído pela janela lateral do automóvel enquanto ele circula a uma velocidade normal numa autoestrada. Uma segunda, que se liga ao novo imaginário ecológico: um aterro sanitário. Vai-se construindo com o acumular de detritos que, assim, vão preenchendo um espaço antes vazio. No final do preenchimento tudo é coberto e relva é plantada, dá-se então uma espécie de metamorfose: a imagem dos detritos transforma-se em paisagem “natural”.
A temporalidade comprimida que hoje governa as nossas vidas potencia também uma nova forma de lidar com as imagens. Por um lado, a voracidade tecnológica do digital tem acrescentado camadas operativas às competências do fazer das imagens no sentido da sua generalização, ao mesmo tempo que, dada a sua facilidade, as massifica. Por outro lado, a falta de tempo e o elevado número de imagens produzidas coloca-as em situação complexa e difícil. A equivalência a ser efectuada será, por isso, sempre em torno da relação entre o seu número e a sua difusão. Nada mais efectivo, nos nossos dias, que a preocupação constante de fazer imagens: imagens de nós próprios, imagens dos outros, imagens da natureza, imagens abstractas, imagens de tudo. Cada um de nós produz as imagens que entende, livre das preocupações selectivas e do consequente tempo necessário ao processo. As imagens formam-se, assim, numa espécie de livre arbítrio de significação em que nada é oposto à sua produção. Bem pelo contrário; têm o apoio, por vezes mais discreto, em outras totalmente explícito, de toda uma parafernália tecnológica que ao aperfeiçoar automatismos cada vez mais sofisticados tentam substituir-se activamente à competência e ao olhar, tornados, assim, desnecessários e, talvez, obsoletos.
A primeira metáfora que propusemos, a da janela do automóvel ganha, assim, uma dimensão totalizadora, completamente exterior às próprias imagens, concentrando-se, acima de tudo, na sua produção. Não interessa para nada a incursão imersiva nas próprias imagens, trata-se, antes, de uma canibalização delas próprias por uma lógica que lhes é absolutamente exterior: aquela que as conduz à condição de coisa que passa a enorme velocidade. A velocidade contém no seu âmago a dupla condição essencial de uma temporalidade acelerada e de um espaço em constante luta pela sua afirmação e que, contudo, não consegue escapar à precariedade absoluta.
As imagens passam e nada fica. A retenção da sua corporalidade imagética, da sua aparência como permanência de uma certa porção de realidade desvanece-se na instantaneidade a que se encontram sujeitas. E, contudo, a velocidade do seu próprio arrastamento, dos restos e dos rastos que deixam, produzem uma outra forma de entender as imagens e a realidade: acima de tudo, em amplitude alargada da necessária atenção que, obviamente, falha ao ser confrontada com a torrente a que se encontra sujeita. Mas é nesses restos, cada vez mais reduzidos à sua efemeridade temporal, que se apostam todas as potencialidades para as imagens do nosso tempo. Já quase que não na possibilidade contemplativa de uma deriva ao longo da imagem (embora esta seja da maior importância, como veremos à frente), mas numa espécie de blinkering constante que a retira do universo próprio das imagens para a inscrever noutra dimensão imagética que lhes é absolutamente alheia e que, contudo, se afirma como definidora dessa nova condição em aparente relacionamento exclusivo. Trata-se de uma espécie de ruína da própria imagem, não no sentido benjaminiano mas antes no de uma outra possibilidade que, pela falta essencial da componente temporal, não chega a afirmar-se… Passa. Simplesmente.
É a esta situação que chegaram as imagens que produzimos em massa no nosso tempo sem tempo. Esta nova produção imagética requer reflexão aprofundada, mais não seja, por parte dessa actual e pequeníssima parcela dos produtores de imagens que se interessam inequivocamente por elas próprias: os artistas. Cabe a estes uma espécie de responsabilização social de resistir (negativamente, diria Adorno) a esta situação. Até porque está em jogo a sua própria sobrevivência enquanto produtores de imagens, externos à torrente e ao manancial contínuo do blinkering digital. Enquanto o manancial se afirma na passagem, as imagens dos artistas (pelo menos algumas, de alguns), afirmam-se, antes, na paragem.
Dizia, com acerto, há uma década atrás T. J. Clark no seu livro The Sight of Death: An Experiment in Art Writing, quando se referia a imagens: «deveriam trazer consigo a possibilidade de dificuldade, profundidade e resistência genuínas».[1] Estas são condições absolutamente exteriores à ideia apressada de passagem, à metáfora do automóvel. São, antes, posicionamentos que reclamam a atenção e o tempo necessário.
Sejamos claros, a ideia de pandemia das imagens só é justificável pela inexistência da sua permanência temporal. Tanto ao nível da produção como da recepção. O que parece ser mais importante não é a qualidade, mas a quantidade e, por isso mesmo, perdeu-se uma das mais necessárias condições para que as imagens sejam produzidas e fruídas: a sua condição selectiva. Sem a selecção, a construção pandémica forma-se inevitavelmente. Relembremos a noção de um pan-sistema: é uma forma de actuação que pode ir da governação às doenças, como agora experienciamos duramente, e que tem como principal característica a ocupação global do tempo e do espaço de tal forma, que, por ser total, não permite o ajuizar da sua dimensão. O todo transforma-se então no não existente, exactamente por não haver opções de externalidade.
Aquilo que designamos como pandemia das imagens refere-se a esta dimensão trágica das imagens em contínuo falhanço de si próprias. Imagens que não têm sequer assegurada a sua existência enquanto tal, porque a sua condição fundacional se transfigura quase imediatamente em condição de desaparecimento. A noção debordiana da imagem que forma o espectáculo é, assim, completamente ultrapassada por esta condição já pós-espectacular em que a dimensão da imagem é ela mesma sinónima de um rasto que já não consegue ser corporizado, antes, fugazmente visualizado. E, contudo, continuamos a consumir desenfreadamente os rastos das imagens que nos chegam a todo o momento. Mas este é um paradoxo que deve ser desmontado. Utilizemos, a título de exemplo, as inúmeras séries televisivas que invadem diariamente os também inúmeros canais que hoje, quase todos, possuímos. Apesar do que temos vindo a afirmar aqui, sabemos bem que algumas têm uma permanência muito alongada chegando, nos casos mais extremos, a mais de uma década. A questão que podemos colocar de início é que a imagética destas se vai repetindo infinitamente e, no entanto, continuamos a ver. Então o que nos “agarra” a estas imagens sem corpo? É exactamente o seu corpo sem imagens. O argumento, quer dizer, as palavras. O paradoxo torna-se então evidente, apesar de quase invisível: será o anacronismo das palavras com a sua dimensão semântica aquilo que assegura a possibilidade de existência fugaz dos rastos das imagens?
1 Rui Manuel Vieira, Vivre et Morrir, série de 8 desenhos (grafite sobre papel, 70 × 55 cm), 2020
Uma exposição realizada o ano passado, assinada pelo artista brasileiro Rubens Mano, colocava esta questão de forma muito pertinente: uma grande parede branca ocupada na totalidade com um longo texto. Se nos aproximássemos, contudo, verificávamos que o texto era constituído por letras desenhadas manualmente a grafite. O artista colocava-nos perante um enigma: tratava-se de uma imagem (um desenho) ou um texto. Será, de facto, um enorme desenho, mas que, por vontade própria, não nos conduz a nenhuma imagem, mas aos significados construídos pelas próprias palavras. É a partir destes que construiremos as imagens que quisermos. Neste caso, encontramo-nos num território distante dos rastos da metáfora do automóvel. Aqui, a atenção exigida, tanto ao nível do fazer como da recepção é máxima. Não se trata já de uma visão fugaz, antes, de um investimento temporal na obra que conduz o espectador para a exterioridade da impaciência generalizada. Para o território das temporalidades minoritárias e alargadas que reclamam o tempo como exigência reflexiva para as obras. Talvez este seja um primeiro exemplo do que tentaremos definir como a possibilidade utópica das imagens necessárias.
Um outro bom exemplo é o livro do fotógrafo Eduardo Brito East ending. Neste, uma reacção excessiva de um personagem perante a possibilidade de ser fotografado vem chamar a atenção para o incómodo do excesso das imagens e da facilidade com que aparecem. Mas, também, para a necessidade de outras imagens, de outras formas de as realizar e corporizar.
O que poderá ser, então, o que hipoteticamente designaremos como imagem necessária? Antes de mais, e por razões de óbvia negatividade (já aqui tocámos no assunto adorniano), é uma imagem que deliberadamente se ausenta. Que se remete a uma espécie de silêncio, só que cromático. Uma sombra que a coloca em posição apagada. Sobretudo, uma imagem que potencia o enigma. Uma imagem, então, que comporte uma ideia utópica de exterioridade à pandemia pois tem a absoluta consciência de que é necessária. Uma imagem “inexterior” como poderia dizer Jacques Lacan.
A necessidade das imagens no nosso tempo é desajustada e artificial, e daí terem perdido o seu valor, o que torna tão necessárias as imagens necessárias. No livro do Eduardo as imagens são discretas, sombrias, não atraentes, talvez até deceptivas, mas estas são, afinal, outras características que as afastam da amabilidade generalizada da imagética do nosso tempo e por isso, também, necessárias. Tal como a obra do Rubens Mano, também neste livro, são as palavras (sempre o foram) que remetem para uma visualidade e que, dessa forma, libertam as imagens do peso transparente da comunicação. As imagens necessárias são, por isso, opacas por inerência. A visualidade das palavras encarrega-se, desta forma, de operar uma espécie de transferência de território. Voltemos então ao livro: a cena da fotografia ofensiva é descrita com tanto rigor visual que dispensa a fotografia, que, assim, consegue sobreviver sem essa necessidade narrativa para se concentrar no que é importante às próprias imagens, ou como diria Barthes, no seu punctum. Refere a este propósito o filósofo alemão Byung-Chul Han: «Ao contrário do shock (benjaminiano), o punctum (barthiano) não grita. O punctum ama o silêncio, conserva o segredo. Apesar do seu silêncio pronuncia-se como ferida. Uma vez que se aboliram todos os significados, todas as intenções, todas as opiniões, todas as valorizações, todos os juízos, todos as encenações, todas as poses, todos os gestos, todas as codificações e todas as informações, o punctum revela-se como um resto permanente, como um resto que entoa a sua canção e nos consterna. O punctum é o restante resistente que fica após a representação, o imediato que se subtrai à transmissão por meio de sentido e significação; é o corporal, o material, o afectivo, o inconsciente; é mais, é o real que se opõe ao simbólico».[2]
Encontramo-nos, portanto, perante um confronto entre a visualidade das palavras e a invisualidade, chamemos-lhe assim, das imagens. Entre o simbólico da linguagem e a opacidade do real.[3] Imagens inoperativas e, por isso mesmo, despojadas da gritaria comunicacional, habitadas pelo silêncio, necessárias. As imagens que o Eduardo nos mostra são silenciosas, mudas, porque deliberadamente se auto-desactivaram da função ilustrativa.
Igualmente, no conjunto de desenhos do artista Rui Manuel Vieira estas questões são reflectidas e desenvolvidas de um modo exemplar. O processo é, também neste caso, absolutamente selectivo. O que se inicia como uma imagem aparentemente descritiva, vai passar por todo um fazer desconstrutivo e de rarefacção. O seu final tem como resultado duas imagens que cabem, também, na categoria utópica das imagens necessárias. Nos desenhos finais do conjunto restam apenas duas palavras – extraordinaire e collective – uma em cada folha, nada mais. Apenas a palavra desenhada a grafite a desafiar, de novo, a ambiguidade. A operação integra-se por inteiro na condição de inoperatividade agambeniana e, apesar disso, ou, talvez por isso, os desenhos afirmam a sua integridade enquanto tal, longe de qualquer ilusão ilustrativa ou representativa, apenas desenhos. Que imagens conseguiremos formar para cada uma delas? Todas as que quisermos. Outra vez.
Um outro, e talvez decisivo, exemplo é a obra de Steve McQueen End Credits (2012–2016). Uma obra politicamente empenhada e, como tal, com significados fortes. Construída como homenagem ao cantor negro Paul Robeson, perseguido pelo McCarthysmo nos anos 50 americanos por suspeita de ligações ao Partido Comunista. Foi, por essa razão, completamente proibido de actuar e de editar discos. Uma situação que McQueen, ao concentrar-se neste caso, pretende que seja alargada, obviamente, a muitos outros que se conhecem desta época negra da história americana. O que é mostrado na obra é a totalidade dos documentos libertados para o domínio público, passados os 50 anos de confidencialidade, o famoso top secret.
A obra constitui-se, assim, como um longo end credits em que os documentos passam continuamente em scroll tal como em qualquer final de filme e que é, também, um exercício de duração (componente decisiva do tempo) nas suas quase treze horas de imagens, às quais se acrescentam as quase dezanove horas de texto lido, portanto, de som, provocando, desta forma, uma disruptiva relação imagem/palavras na duração do loop. Trata-se, uma vez mais, de um exercício que nos solicita, enquanto público, uma atenção que se coloca de forma muito longínqua relativamente à impaciência generalizada das imagens que analisámos inicialmente neste texto e para as quais utilizamos o adjectivo de pandémicas. Já não se trata de um rasto que se remete à instantaneidade maquínica do tempo, antes, de uma longa maratona… assim decidida e, portanto, deliberada.
Num texto importante, o filósofo inglês Peter Osborne refere-se a uma possibilidade para as imagens resilientes como sendo, e citamos, «super boring»,[4] quer dizer, em que o aborrecimento é, visível e deceptivo. A obra de McQueen demonstra a sua enorme capacidade interventiva, de novo, na quase impossibilidade de leitura (muitas páginas encontram-se completamente truncadas), mas, sobretudo, nos diálogos entre as duas vozes que nos vão fornecendo os dados (as imagens) através das palavras que são ditas.
Esta é uma característica que nos interessa como forma de resistir. O alongar do tempo, ainda por cima assíncrono, como na obra de McQueen, vem colocar questões da maior importância sobre o significado da persistência do tempo na obra de arte e, sobretudo, da sua intrínseca necessidade. As imagens necessárias necessitam do tempo necessário. No livro já citado de Peter Osborne o filósofo escreve: «a obra de arte é sempre contextual e incorpora necessariamente parte do sentido projectado pelas suas condições de recepção no interior da lógica da sua produção».[5]
Mas então qual o porquê das imagens, aqui, hoje, num tempo sem tempo?
Voltemos, agora mais detalhadamente, à noção de inoperatividade de Agamben. Esta ajuda-nos a entender esse porquê: pela desactivação da operatividade que lhes é tradicionalmente atribuída e, como tal, pela transformação da sua normatividade ao tornarem-se utopicamente anormativas.
A segunda metáfora que propusemos no início deste texto vai, assim, ganhando forma. De camada em camada o lixo acumulado (a pandemia das imagens) vai, aos poucos, operando a acção agambeniana da inoperatividade. Diz o filósofo que a cadeira vazia do poder e da glória simbólica se afirma, por falta de elementos para a ocupar, como inerentemente inoperativa. A proximidade do grau zero em que as imagens se encontram corporizam na perfeição este vazio que, contudo, é contabilizado aos milhões. Todos os dias são produzidas dezenas de milhões de imagens e, no final, nada resta… apenas os seus rastos difusos que se vão acumular e, ao fazê-lo, transformar a paisagem. A metáfora do aterro sanitário torna-se por isso importante pois permite o entendimento da alteração aqui proposta. Talvez as imagens necessárias sejam aquelas que são formadas pelos visitantes do jardim plantado e nascido em cima das camadas de lixo e que, sentados num qualquer banco, olham a paisagem e imaginam as imagens que quiserem. Talvez a imagem necessária seja, antes de mais, uma utopia da própria imagem, pela impossibilidade de a corporizar. A materialização de qualquer imagem dita necessária teria sempre um pendor moralista que não queremos para aqui chamar. Ao invés esta constitui uma activa introdução no território utópico das possibilidades em aberto.
Uma exposição iniciada em Fevereiro de 2020 e interrompida pelo actual surto pandémico (não das imagens) tinha como título algo que se aproxima destas constatações: Have you seen a horizon lately?.[6] Mas esse horizonte só pode ser visto do cimo do aterro. A inoperatividade introduzida nas imagens que se podem produzir mentalmente nesta condição é fundamental à sua existência como necessária. Quer dizer, necessitamos todos de imagens, mas não temos necessidade nenhuma da necessidade que nos querem impor como imagem.
Outro exemplo, pessoal: uma máquina de filmar comprada em Budapeste. Objecto magnífico e ansiado. Obsoleto. Chegado ao atelier, a curiosidade leva à abertura da máquina e, qual o espanto, está todo um filme lá dentro. As imagens que foram sensibilizadas pela luz, ficaram completamente queimadas pela mesma luz que as eliminou ao serem expostas depois da abertura do aparelho. Que imagens lá estariam? A criação de um filme tentará responder a esta pergunta impossível: mas uma coisa é certa, poderão lá estar as que se quiser… e assim vai ser. Estas são, por isso, também, as imagens necessárias.
Toda esta situação se pode inscrever na importante constatação de Agamben a este propósito. Refere o autor italiano: «Um exemplo vai permitir esclarecer como devemos entender esta “operação inoperativa”. O que é, aliás, um poema, senão aquela operação linguística que consiste em tornar a língua inoperativa, em desactivar as suas funções comunicativas e informativas, para a abrir a um novo possível uso? Ou seja, a poesia é, nos termos de Espinosa, uma contemplação da língua que a traz de volta para o seu poder de dizer… Mas, em todo o caso, trata-se de uma operação que ocorre na língua, que actua sobre o poder de dizer. E o sujeito poético é não o indivíduo que escreveu os poemas, mas o sujeito que se produz na altura em que a língua foi tornada inoperativa, e passou a ser, nele e para ele, puramente dizível».[7]
Depois das palavras de Agamben nada melhor para terminar este texto que o recurso a um outro exemplo do que poderemos continuar a designar utopicamente como imagem necessária: o “organetto”, espécie de instrumento musical inicialmente projectado e desenhado por Leonardo e nunca terminado até muito recentemente. Mário Azevedo e uma equipa de especialistas de uma Universidade holandesa conseguiram dar corpo ao objecto. Trata-se finalmente de um instrumento que se pode tocar. E, contudo, este instrumento não produz qualquer som. A imagem imaginada de um músico a operar o instrumento e a não produzir qualquer som é uma imagem necessária pois nela estão contidos todos os sons e imagens que lhe queiramos associar. A operação inoperativa é aqui, outra vez, tornada fundamental.
A possibilidade da impossibilidade (de novo).
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2 Rubens Mano, versão-palavra, grafite sobre parede (desenho mural), 2019
3 Eduardo Brito, East Ending (imagem do livro), Pianola, 2017
4 Steve McQueen, End Credits, instalação vídeo, com som, 2012–2016
5 Mário Azevedo, (construtor, Reijnier Kloeg), Organetto, objecto sonoro, 2016
[1] T. J. Clark, The Sight of Death: An Experiment in Art Writing. Yale, Yale University Press, 2006.
[2] Byung Chul Han, A Salvação do Belo. Lisboa, Relógio D´Água, 2016.
[3] Aqui, obviamente, no sentido lacaniano dos termos.
[4] Peter Osborne, Anywhere or Not at All – Philosophy of Contemporary Art. London, Verso Books, 2013.
[5] Ibid
[6] O título da exposição Have you seen a horizon lately?, no Museum of African Contemporary Art Al Maaden em Marraquexe, é uma referência a uma música de Yoko Ono.
[7] Giorgio Agamben, «Arte, Inoperatividade, Política», in Política, Crítica do Contemporâneo. Porto, Fundação de Serralves, 2007.
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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020