Vitor Almeida
Menina Aérogina, mulher volante
Pombo, voa! Aerógina
Ela mente com o seu corpo
Mais que o espírito imagina
O artifício do décor.
Aerógina, voa pombo!
Sonha, alivia o sono pesado;
Eloá, domadora de Eolo.
Num oceano de veludo
Jean Cocteau, 1922
Estava prestes a começar a sessão do cinematógrafo. As pessoas acotovelavam-se à entrada, havia sempre uma certa confusão – as sessões iriam repetir-se consecutivamente mas a novidade era irresistível. Vendiam-se bilhetes e havia ainda quem entrasse sem pagar, alguns ficavam de pé, e por vezes ainda entravam pessoas com a projecção a decorrer. Os filmes eram curtos e o programa era do conhecimento prévio do público mas a ordem era imprevisível – o projeccionista seguia muitas vezes a sua própria intuição ou acedia aos pedidos dos espectadores. Eram habituais os comentários, por vezes em diálogo com as observações do projeccionista que apresentava os filmes com breves narrações e que pontualmente usava aparatos que produziam uma sonoplastia específica. Por vezes, na mudança da bobine, passava para uma lanterna mágica e projectava slides coloridos, ilustrações e fotografias pintadas, caricaturas populares, esqueletos bailarinos e, logo depois, voltava para a imagem cinematográfica. Nestas, dominavam o preto e branco, e alguns filmes pintados. Alternavam-se quase sempre imagens de alguma azáfama – acima de tudo, era o movimento – por entre o quotidiano e a fantasia, a cidade, com pessoas na rua a caminhar, veículos em andamento, mas também imagens de circo, com domadores e animais exóticos, acrobatas, combates de pugilismo, ou bailarinos e cómicos do teatro burlesco; e, subitamente, surge no ecrã uma mulher. Com uma indumentária peculiar, de braços caídos, coloca-se no centro dum palco. De repente, começa a mexer-se, agitando os braços e rodopiando; os panejamentos parecem ganhar vida esvoaçando, desenhando curvas e, por breves segundos, todos observam extasiados. Era um pouco difícil explicar o que estavam a ver, de tão encantados. O movimento ininterrupto e circular do longo figurino que cobria o corpo da bailarina, revoluteava pelo ar e criava um enlevo progressivo; e cada espectador, por um minuto, se deixaria arroubar por aquele tão breve quanto hipnótico deleite. Tratava-se da dança da serpentina, um filme dos irmãos Lumière, e a bailarina era Loie Fuller.
Esta dança esquisita já era conhecida nos palcos de Paris, mas a sua reprodução cinematográfica levou-a a todo o lado. Praticamente em simultâneo, surge na época uma versão colorida, aditando um efeito de vibração de cores. Por entre o público anónimo desta dança estariam figuras célebres da cultura e das artes, que tratariam recorrentemente da sua exaltação – o jovem Umberto Boccionni terá sido um deles, e perante aquele movimento infinito e vibrante, vislumbrou a ninfa modernista que anunciava o caminho.
Observe-se primeiro a origem deste filme que, no fundo, era um documentário que se converteu posteriormente numa ficção. Documentava uma dança criada por Loie Fuller, que inventara um dispositivo conjugado com um vestido de longos panejamentos que lhe permitia executar movimentos visualmente espantosos. Fuller, bailarina e coreógrafa, celebrizou-se principalmente pelas suas actuações na capital francesa, no Folies Bergéres e na Ópera de Paris. Protagonizou alguns dos filmes que subsistiram até hoje desta dança, sendo incerta, no entanto, a sua identificação em muitos destes, uma vez que se propagaram inúmeras imitações. A performance consiste numa dança com posições em constante rotação e movimento, com a bailarina agitando longos panejamentos ou véus, criando um efeito de permanente transfor-
mação das formas. Segundo a própria, a dança era entendida como um espectáculo de movimento, luz e cor. Para este efeito, Fuller também concebeu um sistema de iluminação eléctrica colorida, com o intuito de expandir o efeito pretendido, chegando a registar duas patentes resultantes do trabalho desenvolvido para esta dança: o desenho do vestido e das suas varas de suporte, e o jogo de luz – claramente em contexto competitivo, característico dessa época em que se multiplicam e proliferam invenções e patentes do novo industrialismo.
Nos primeiros anos do cinema tudo era cinematograficamente registável e a insistência em certos temas ou motivos tornou natural que a dança assumisse um género fílmico, assim como outros mais ou menos curiosos, que aos olhos do espectador contemporâneo da época iam ao encontro do gosto dominante do público, que apreciava bastante as danças tradicionais e de burlesco. Até que ponto este registo era puramente documental ou passava para o domínio da ficção é difícil de definir. Desde cedo, eram elaboradas pequenas encenações em função da filmagem, e os protagonistas olhavam para a câmara e faziam interjeições para um espectador invisível e, muitas vezes, em jeito de diálogo. A performance de malabaristas, artistas de circo, ou de actores em breves gags de humor, poderia ser apenas um registo documental da actuação de todos eles em palco, mas cedo se percebeu que poderiam criar-se situações específicas em função da posição da câmara, desenvolvendo também ocorrências ou micro-narrativas apenas do domínio fílmico. Esta estratégia tornou-se mais clara quando se recorreu a elementos cinematográficos específicos como, por exemplo, a manipulação da imagem e a montagem.
Se numa primeira fase o cinema parecia genericamente colado à herança visual dos espectáculos de lanterna mágica, como ao teatro de Vaudeville e às atracções das feiras, não deixa de ser determinante que os progressos técnicos e a descoberta de possibilidades de construções fílmicas específicas tenham ocorrido a par da vontade de experimentar a sua combinação com as artes visuais antecedentes e estabelecidas, o mesmo se passando rela-
tivamente às artes performativas (teatro, dança e música) e à literatura. Um aparente arcaísmo inicial no recurso às artes visuais e performativas não deixa de expor uma consciência estratégica transdisciplinar, tanto no campo do entretenimento, como no que pretende ser mais erudito, tal como mais tarde se verificou pela combinação de referências e citações, sugerindo tendências dominantes da cultura visual desse tempo e, sobretudo o desejo de alargar o âmbito do cinema.
Irmãos Lumière, Danse serpentine, 1897
Alice Guy, Danse serpentine, 1900
No primeiro cinema não existia ainda uma gramática fílmica. Instituiu-se, bem depois, a expressão de cinema pré-código que denomina esta fase, em que os estilos e os géneros estão em definição e experimentação. A prática demonstra que nem tudo era decorrente da intuição: são conhecidas as influências notórias e secundárias das outras artes; e, noutro sentido, quando um filme era produzido, os seus autores iam descobrindo novas possibilidades do novo dispositivo cinematográfico – daí a impressão, hoje em dia, de que tudo era possível. Era também frequente o mercado ditar orientações, mesmo que num ambiente competitivo de produção e distribuição sem muitas regras estabelecidas, nomeadamente através da manifesta facilidade de reprodução e circulação de cópias ilegais. Geralmente encarada como uma resposta dos produtores às exigências do gosto sempre incerto do público, ocorriam muitas vezes imitações e a cópia descarada, mas, no caso dos cineastas, questiona-se se a replicação não terá sido também um impulso que potenciou a dinâmica de renovação contínua. Jonathan Auerbach propõe que a imitação/cópia/reprodução ajudou os cineastas e o seu público a dominar os códigos emergentes de inteligibilidade.[1] Um dos problemas recorrentes na produção pioneira é o facto de se terem perdido muitos filmes e documentação sobre as produções deste período, o que fez com que muitas vezes ficasse oculta ou ausente a identificação da originalidade duma criação ou de algo que havia sido experimentado pela primeira vez. Só décadas mais tarde, os mais criativos e distintos seriam reconhecidos como autores em fecundação pelos sinais evidentes da sua singularidade e descoberta dum discurso fílmico.
Voltando à dança da serpentina, estamos ainda longe do que depois se veio a denominar de filmes de dança no cinema e no vídeo, mas estava aberto um caminho para variações múltiplas, algumas delas pouco prováveis, como se abordará mais à frente. Percebamos antes alguns aspectos relevantes na dança da serpentina que foram influentes. O pioneirismo de Loie Fuller foi de grande importância no mundo da dança contemporânea, citando Isadora Duncan (que chegou a pertencer à sua companhia) e Martha Graham, essencialmente, pelo modo como via a dança enquanto síntese de todas as artes, e pela passagem que efectuou entre o espectáculo de entretenimento e a dança contemporânea. É sobretudo nos primeiros anos do cinema que deixa um impacto decisivo precisamente com a dança da serpentina. Esta é apresentada em 1892, e pouco tempo depois filmada pelos irmãos Lumière (1895) e por Edison/Dickson (1896). Surgiram muitas réplicas de outros autores, que nunca atingiram a sofisticação alcançada por Fuller, mas isso não era o essencial: importante era conseguir recriar aquele efeito de movimento contínuo, hipnótico e interminável. Se já era encantatório, desde muito cedo se começaram a pintar os filmes, numa espécie de resposta à lanterna mágica, onde eram comuns as imagens policromáticas. Contudo, a pintura aqui era executada à mão, frame a frame, e ainda que o propósito da coloração pudesse ser no sentido de algum mimetismo da luz e cor explorada na performance original, o efeito fílmico não era realista. Semelhante à técnica utilizada em outras experiências fílmicas, geralmente destacando objectos ou protagonistas, neste caso reforçando um carácter etéreo e intermitente – a sucessão e impermanência cromática tende para a abstracção, o que, para alguns investigadores, se aproxima da abordagem utilizada nas cópias pintadas dos filmes de féeries (por exemplo, os imaginários de fantasia de Méliès). Pode, assim, ser entendida como um acaso que explora a visão dinâmica impressionista da cor, em contexto cinematográfico. Edison, a propósito da invenção do kinetoscópio, referiu-se ao dispositivo como a «máquina que faz pequenas imagens que dançam»[2] – o que manifesta a afinidade com as artes mais ancestrais da nova invenção e a possibilidade de referencialidades mais complexas.
Ocorria outra transformação, ao assistir-se a este evento mediático – o efeito encantatório parecia transpor a bidimensionalidade do ecrã, ainda que por breves instantes, e o público entregava-se sem conseguir desviar os olhos do fenómeno. O deslumbramento perante esse movimento e vibração contínua era acompanhada por uma leveza inesperada, distinta dos outros filmes pois não tinha qualquer analogia com a realidade, como uma novidade absoluta: uma ligação à modernidade. Como refere Deleuze, a imagem de Fuller é um modelo exemplar de transformação através do fluxo e da continuidade rítmica, apresentando de um modo elementar a imagem-movimento.
Uma grande parte da fase inicial das produções de Edison/Dickson resume-se ao registo de corpos atléticos, de acrobatas e bailarinos de danças populares e etnográficas, contribuindo neste período para o género que se denominou de filmes de dança. Expandiu-se internacionalmente como um dos géneros mais estáveis até 1904, com múltiplas variações, e novamente, por Edison/Dickson, no filme Annabelle and the butterfly dance (1895). Subitamente, numa década, gera-se um fenómeno global de citações e variações, como uma norma transitória, levando até ao limite as suas possibilidades expressivas, geralmente, num registo humorístico.
Para os cineastas a oportunidade não poderia ser exclusiva, e ocorre uma mutiplicação explosiva, em que mais do que a replicação pura da serpentina, no filme seguinte era preciso ir mais longe para não deixar de surpreender o espectador. Após os irmãos Lumière, muitos dos protagonistas do cinema pioneiro pareciam impelidos a experimentar a sua versão: Edison/Dickson, mas também Méliès (1896), a francesa Alice Guy (1897, 1900, 1902), os alemães Max e Emil Skladanowsky (1895), o português Aurélio da Paz dos Reis (1896) – tendo como protagonista a actriz brasileira Cinira Polónio –, o espanhol Segundo de Chomón (1908), as companhias francesas Pathé e Gaumont, a companhia italiana Cines, etc.
As variações surgem sem constrangimentos, percorrendo todo o tipo de extravagâncias: na produção Création de la Serpentine de Chomón, começamos por ver uma personagem semelhante ao Mefistófeles a preparar uma poção mágica, que após uma explosão faz surgir uma bailarina que imediatamente começa a executar a dança. Após algum tempo, assiste-se a uma trucagem e passamos a outro espaço maior, como um plateau, no qual durante cerca de um minuto, a protagonista circula e, repentinamente, entram em palco mais oito bailarinas, enchendo o enquadramento. O efeito de surpresa em relação ao que se apresenta em campo e ao que surge fora de campo é irresistível. Chomón revelar-se-ia uma das figuras essenciais na criação de efeitos especiais, especialista de trucagens na animação frame a frame e um dos principais responsáveis na coloração dos filmes, desde o início até à instauração da técnica stencil que se tornou a abordagem dominante em larga escala. Noutra das mais extraordinárias variações, realizada por Alice Guy em 1900 – aliás, a primeira mulher cineasta na história do cinema – assiste-se a um domador de leões dentro de uma jaula, que durante um minuto procura lidar com os animais e controlar a situação, quando inesperadamente entra em campo uma bailarina que executa a serpentina perante os leões, aparentemente agradados.
A partir de 1904, os filmes constituídos apenas por danças são menos frequentes, mas, no entanto, estas são integradas em narrativas. A versão de Méliès (em 1896) da dança da serpentina perdeu-se (conhecendo-se a sua existência através do catálogo da sua companhia) mas o autor ainda a inseriu em vários filmes, como em La danse du feu (1899), no qual um demónio, através de um truque de magia e fogo, convoca uma bailarina que executa a serpentina; o figurino sugere as labaredas, reforçadas pela cor, e no fim desaparece em combustão. A escolha do título La danse du feu não terá sido casual pois é uma das denominações da dança de Fuller e comum ao título de múltiplas obras de artes plásticas que representam a performance. A proliferação de versões fílmicas também terá contribuído para que o impacto da dança se alastrasse às outras artes, reforçando a ideia de que a cinematografia pioneira se desenvolveu numa atmosfera de intermedialidade visual e artística.
Não será de estranhar que o fascínio pela dança da serpentina suceda em grande parte pelo efeito hipnótico e sensual do movimento contínuo e da metamorfose cromática, funcionando desde logo como uma atracção perceptiva, por excelência, no cinema das atracções. Os indícios de abstracção parecem antecipar experiências cinematográficas que apenas vão surgir em meados da década de 20. Porém, mesmo que o efeito sugestivo tenha sido consciente – à semelhança de outros filmes pintados deste período –, percebe-se que a intenção era mais expressiva e metafórica, e menos de reprodução da realidade.
A partir da dança da serpentina no primeiro cinema, compreende-se (e anuncia-se) uma linhagem discursiva na sua adaptação para o ecrã: movimento e dinamismo, luz e sombra, transformação e metamorfose, a cor, o truque e a ilusão. Importa entender a sua mani-
festa replicação no cinema, e que essa difusão por múltiplas experiências cinematográficas ocorreu enquanto fenómeno de contaminação em âmbito também fílmico. Por exemplo, Aurélio da Paz dos Reis, não terá visto o espectáculo de Fuller ao vivo, supondo-se que terá assistido à sua projecção cinematográfica, especificamente da versão dos Lumière (exibida no Porto em 1895) fazendo depois a sua versão em 1896, como muitos outros na Europa e na América, que em cópia, adaptação ou recriação a inseriram nos seus filmes, como se pertencesse a um repertório colectivo em formação, que era urgente testar e partilhar. Trasladar e transcrever esta atracção, e o seu extraordinário efeito estético, significou menos um acaso que uma oportunidade. Por um lado, o renome de Fuller e o sucesso específico desta performance garantiam rentabilidade para os produtores de cinema, e não conseguindo Fuller patentear a dança per se, abriu-se um caminho dourado para a sua reprodução e referenciação. Por outro lado, a notoriedade do seu vanguardismo atraiu a adesão e o engenho dos que, entre os cineastas (e não apenas estes), apontavam para a nova frente – por associação, para legitimação artística ou afirmação autoral. Em cada abordagem, arte e ciência apresentam o paradigma da modernidade em formação: a estética da curva, a figura etérea. E a dança branca, do fogo, das luzes, de Fuller, iconiza-se.
Deste fenómeno de variedade produtiva e em rápida propagação se retira ainda um conhecimento geral real da produção fílmica que atravessa fronteiras, e sugere um complexo preceito, aquando da realização cinematográfica. No que diz respeito ao modo de abordar uma convenção, um tema ou um género – entre a imitação e a variação, entre a aprendizagem e a invenção – insinua-se, constante e desde a sua formação, o sentido de reconstrução, serpenteando o caminho da grande ilusão.
O que se relê – em cada curva – é tão ancestral quanto, paradoxalmente, moderno.
Segundo de Chomón, Création de la serpentine, 1900
[1] Jonathan Auerbach, Body Shots: Early Cinema’s Incarnations. Berkeley, University of California Press, 2007.
[2] Richard Abel, Encyclopedia of Early Film. New York, Routledge, 2005, p. 233.
Situação Crítica
Estética e Hospitalidade
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What do U Want 4 Xmas?
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Da pandemia das imagens às imagens necessárias
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Em defesa das imagens pobres
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Vitor Almeida
Estava prestes a começar a sessão do cinematógrafo. As pessoas acotovelavam-se à entrada, havia sempre uma certa confusão – as sessões iriam repetir-se consecutivamente mas a novidade era irresistível. Vendiam-se bilhetes e havia ainda quem entrasse sem pagar, alguns ficavam de pé, e por vezes ainda entravam pessoas com a projecção a decorrer. Os filmes eram curtos e o programa era do conhecimento prévio do público mas a ordem era imprevisível – o projeccionista seguia muitas vezes a sua própria intuição ou acedia aos pedidos dos espectadores. Eram habituais os comentários, por vezes em diálogo com as observações do projeccionista que apresentava os filmes com breves narrações e que pontualmente usava aparatos que produziam uma sonoplastia específica. Por vezes, na mudança da bobine, passava para uma lanterna mágica e projectava slides coloridos, ilustrações e fotografias pintadas, caricaturas populares, esqueletos bailarinos e, logo depois, voltava para a imagem cinematográfica. Nestas, dominavam o preto e branco, e alguns filmes pintados. Alternavam-se quase sempre imagens de alguma azáfama – acima de tudo, era o movimento – por entre o quotidiano e a fantasia, a cidade, com pessoas na rua a caminhar, veículos em andamento, mas também imagens de circo, com domadores e animais exóticos, acrobatas, combates de pugilismo, ou bailarinos e cómicos do teatro burlesco; e, subitamente, surge no ecrã uma mulher. Com uma indumentária peculiar, de braços caídos, coloca-se no centro dum palco. De repente, começa a mexer-se, agitando os braços e rodopiando; os panejamentos parecem ganhar vida esvoaçando, desenhando curvas e, por breves segundos, todos observam extasiados. Era um pouco difícil explicar o que estavam a ver, de tão encantados. O movimento ininterrupto e circular do longo figurino que cobria o corpo da bailarina, revoluteava pelo ar e criava um enlevo progressivo; e cada espectador, por um minuto, se deixaria arroubar por aquele tão breve quanto hipnótico deleite. Tratava-se da dança da serpentina, um filme dos irmãos Lumière, e a bailarina era Loie Fuller.
Esta dança esquisita já era conhecida nos palcos de Paris, mas a sua reprodução cinematográfica levou-a a todo o lado. Praticamente em simultâneo, surge na época uma versão colorida, aditando um efeito de vibração de cores. Por entre o público anónimo desta dança estariam figuras célebres da cultura e das artes, que tratariam recorrentemente da sua exaltação – o jovem Umberto Boccionni terá sido um deles, e perante aquele movimento infinito e vibrante, vislumbrou a ninfa modernista que anunciava o caminho.
Observe-se primeiro a origem deste filme que, no fundo, era um documentário que se converteu posteriormente numa ficção. Documentava uma dança criada por Loie Fuller, que inventara um dispositivo conjugado com um vestido de longos panejamentos que lhe permitia executar movimentos visualmente espantosos. Fuller, bailarina e coreógrafa, celebrizou-se principalmente pelas suas actuações na capital francesa, no Folies Bergéres e na Ópera de Paris. Protagonizou alguns dos filmes que subsistiram até hoje desta dança, sendo incerta, no entanto, a sua identificação em muitos destes, uma vez que se propagaram inúmeras imitações. A performance consiste numa dança com posições em constante rotação e movimento, com a bailarina agitando longos panejamentos ou véus, criando um efeito de permanente transfor-
mação das formas. Segundo a própria, a dança era entendida como um espectáculo de movimento, luz e cor. Para este efeito, Fuller também concebeu um sistema de iluminação eléctrica colorida, com o intuito de expandir o efeito pretendido, chegando a registar duas patentes resultantes do trabalho desenvolvido para esta dança: o desenho do vestido e das suas varas de suporte, e o jogo de luz – claramente em contexto competitivo, característico dessa época em que se multiplicam e proliferam invenções e patentes do novo industrialismo.
Nos primeiros anos do cinema tudo era cinematograficamente registável e a insistência em certos temas ou motivos tornou natural que a dança assumisse um género fílmico, assim como outros mais ou menos curiosos, que aos olhos do espectador contemporâneo da época iam ao encontro do gosto dominante do público, que apreciava bastante as danças tradicionais e de burlesco. Até que ponto este registo era puramente documental ou passava para o domínio da ficção é difícil de definir. Desde cedo, eram elaboradas pequenas encenações em função da filmagem, e os protagonistas olhavam para a câmara e faziam interjeições para um espectador invisível e, muitas vezes, em jeito de diálogo. A performance de malabaristas, artistas de circo, ou de actores em breves gags de humor, poderia ser apenas um registo documental da actuação de todos eles em palco, mas cedo se percebeu que poderiam criar-se situações específicas em função da posição da câmara, desenvolvendo também ocorrências ou micro-narrativas apenas do domínio fílmico. Esta estratégia tornou-se mais clara quando se recorreu a elementos cinematográficos específicos como, por exemplo, a manipulação da imagem e a montagem.
Se numa primeira fase o cinema parecia genericamente colado à herança visual dos espectáculos de lanterna mágica, como ao teatro de Vaudeville e às atracções das feiras, não deixa de ser determinante que os progressos técnicos e a descoberta de possibilidades de construções fílmicas específicas tenham ocorrido a par da vontade de experimentar a sua combinação com as artes visuais antecedentes e estabelecidas, o mesmo se passando rela-
tivamente às artes performativas (teatro, dança e música) e à literatura. Um aparente arcaísmo inicial no recurso às artes visuais e performativas não deixa de expor uma consciência estratégica transdisciplinar, tanto no campo do entretenimento, como no que pretende ser mais erudito, tal como mais tarde se verificou pela combinação de referências e citações, sugerindo tendências dominantes da cultura visual desse tempo e, sobretudo o desejo de alargar o âmbito do cinema.
No primeiro cinema não existia ainda uma gramática fílmica. Instituiu-se, bem depois, a expressão de cinema pré-código que denomina esta fase, em que os estilos e os géneros estão em definição e experimentação. A prática demonstra que nem tudo era decorrente da intuição: são conhecidas as influências notórias e secundárias das outras artes; e, noutro sentido, quando um filme era produzido, os seus autores iam descobrindo novas possibilidades do novo dispositivo cinematográfico – daí a impressão, hoje em dia, de que tudo era possível. Era também frequente o mercado ditar orientações, mesmo que num ambiente competitivo de produção e distribuição sem muitas regras estabelecidas, nomeadamente através da manifesta facilidade de reprodução e circulação de cópias ilegais. Geralmente encarada como uma resposta dos produtores às exigências do gosto sempre incerto do público, ocorriam muitas vezes imitações e a cópia descarada, mas, no caso dos cineastas, questiona-se se a replicação não terá sido também um impulso que potenciou a dinâmica de renovação contínua. Jonathan Auerbach propõe que a imitação/cópia/reprodução ajudou os cineastas e o seu público a dominar os códigos emergentes de inteligibilidade.[1] Um dos problemas recorrentes na produção pioneira é o facto de se terem perdido muitos filmes e documentação sobre as produções deste período, o que fez com que muitas vezes ficasse oculta ou ausente a identificação da originalidade duma criação ou de algo que havia sido experimentado pela primeira vez. Só décadas mais tarde, os mais criativos e distintos seriam reconhecidos como autores em fecundação pelos sinais evidentes da sua singularidade e descoberta dum discurso fílmico.
Voltando à dança da serpentina, estamos ainda longe do que depois se veio a denominar de filmes de dança no cinema e no vídeo, mas estava aberto um caminho para variações múltiplas, algumas delas pouco prováveis, como se abordará mais à frente. Percebamos antes alguns aspectos relevantes na dança da serpentina que foram influentes. O pioneirismo de Loie Fuller foi de grande importância no mundo da dança contemporânea, citando Isadora Duncan (que chegou a pertencer à sua companhia) e Martha Graham, essencialmente, pelo modo como via a dança enquanto síntese de todas as artes, e pela passagem que efectuou entre o espectáculo de entretenimento e a dança contemporânea. É sobretudo nos primeiros anos do cinema que deixa um impacto decisivo precisamente com a dança da serpentina. Esta é apresentada em 1892, e pouco tempo depois filmada pelos irmãos Lumière (1895) e por Edison/Dickson (1896). Surgiram muitas réplicas de outros autores, que nunca atingiram a sofisticação alcançada por Fuller, mas isso não era o essencial: importante era conseguir recriar aquele efeito de movimento contínuo, hipnótico e interminável. Se já era encantatório, desde muito cedo se começaram a pintar os filmes, numa espécie de resposta à lanterna mágica, onde eram comuns as imagens policromáticas. Contudo, a pintura aqui era executada à mão, frame a frame, e ainda que o propósito da coloração pudesse ser no sentido de algum mimetismo da luz e cor explorada na performance original, o efeito fílmico não era realista. Semelhante à técnica utilizada em outras experiências fílmicas, geralmente destacando objectos ou protagonistas, neste caso reforçando um carácter etéreo e intermitente – a sucessão e impermanência cromática tende para a abstracção, o que, para alguns investigadores, se aproxima da abordagem utilizada nas cópias pintadas dos filmes de féeries (por exemplo, os imaginários de fantasia de Méliès). Pode, assim, ser entendida como um acaso que explora a visão dinâmica impressionista da cor, em contexto cinematográfico. Edison, a propósito da invenção do kinetoscópio, referiu-se ao dispositivo como a «máquina que faz pequenas imagens que dançam»[2] – o que manifesta a afinidade com as artes mais ancestrais da nova invenção e a possibilidade de referencialidades mais complexas.
Ocorria outra transformação, ao assistir-se a este evento mediático – o efeito encantatório parecia transpor a bidimensionalidade do ecrã, ainda que por breves instantes, e o público entregava-se sem conseguir desviar os olhos do fenómeno. O deslumbramento perante esse movimento e vibração contínua era acompanhada por uma leveza inesperada, distinta dos outros filmes pois não tinha qualquer analogia com a realidade, como uma novidade absoluta: uma ligação à modernidade. Como refere Deleuze, a imagem de Fuller é um modelo exemplar de transformação através do fluxo e da continuidade rítmica, apresentando de um modo elementar a imagem-movimento.
Uma grande parte da fase inicial das produções de Edison/Dickson resume-se ao registo de corpos atléticos, de acrobatas e bailarinos de danças populares e etnográficas, contribuindo neste período para o género que se denominou de filmes de dança. Expandiu-se internacionalmente como um dos géneros mais estáveis até 1904, com múltiplas variações, e novamente, por Edison/Dickson, no filme Annabelle and the butterfly dance (1895). Subitamente, numa década, gera-se um fenómeno global de citações e variações, como uma norma transitória, levando até ao limite as suas possibilidades expressivas, geralmente, num registo humorístico.
Para os cineastas a oportunidade não poderia ser exclusiva, e ocorre uma mutiplicação explosiva, em que mais do que a replicação pura da serpentina, no filme seguinte era preciso ir mais longe para não deixar de surpreender o espectador. Após os irmãos Lumière, muitos dos protagonistas do cinema pioneiro pareciam impelidos a experimentar a sua versão: Edison/Dickson, mas também Méliès (1896), a francesa Alice Guy (1897, 1900, 1902), os alemães Max e Emil Skladanowsky (1895), o português Aurélio da Paz dos Reis (1896) – tendo como protagonista a actriz brasileira Cinira Polónio –, o espanhol Segundo de Chomón (1908), as companhias francesas Pathé e Gaumont, a companhia italiana Cines, etc.
As variações surgem sem constrangimentos, percorrendo todo o tipo de extravagâncias: na produção Création de la Serpentine de Chomón, começamos por ver uma personagem semelhante ao Mefistófeles a preparar uma poção mágica, que após uma explosão faz surgir uma bailarina que imediatamente começa a executar a dança. Após algum tempo, assiste-se a uma trucagem e passamos a outro espaço maior, como um plateau, no qual durante cerca de um minuto, a protagonista circula e, repentinamente, entram em palco mais oito bailarinas, enchendo o enquadramento. O efeito de surpresa em relação ao que se apresenta em campo e ao que surge fora de campo é irresistível. Chomón revelar-se-ia uma das figuras essenciais na criação de efeitos especiais, especialista de trucagens na animação frame a frame e um dos principais responsáveis na coloração dos filmes, desde o início até à instauração da técnica stencil que se tornou a abordagem dominante em larga escala. Noutra das mais extraordinárias variações, realizada por Alice Guy em 1900 – aliás, a primeira mulher cineasta na história do cinema – assiste-se a um domador de leões dentro de uma jaula, que durante um minuto procura lidar com os animais e controlar a situação, quando inesperadamente entra em campo uma bailarina que executa a serpentina perante os leões, aparentemente agradados.
[1] Jonathan Auerbach, Body Shots: Early Cinema’s Incarnations. Berkeley, University of California Press, 2007.
[2] Richard Abel, Encyclopedia of Early Film. New York, Routledge, 2005, p. 233.
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
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4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020