SOBRE PARAÍSO DE LARA JACINTO
Susana Lourenço Marques
A palavra turismo foi introduzida na língua francesa em 1841, dois anos depois de François Arago ter anunciado a invenção da fotografia perante uma plateia de cientistas, seduzidos pela possibilidade de reproduzirem fielmente os grandes monumentos de Gizé, Mênfis e Tebas. Numa alusão à Campanha do Egipto (1798–1801) empreendida por Napoleão Bonaparte, Arago defende a substituição do modelo pictórico pelo registo fotográfico, capaz de descrever fielmente as maravilhas do Oriente e de salvaguardar, mensurar e arquivar esse património artístico e cultural.
A proposta de transferir e tornar portável a experiência do lugar, alterando o modo de o olhar e conhecer, despertou a atenção de um público frequentemente desinteressado em se relacionar diretamente com a experiência da diferença, mas simultaneamente curioso pela acomodação do estranho e do exótico. Foi esta sedução que conduziu fotógrafos, um pouco de toda a Europa, a realizar longas viagens e extensos levantamentos que publicaram e comercializaram para representar as desejadas maravilhas do Oriente. As pequenas imagens do templo de Ramsés II ou das pirâmides de Gizé, que muitos passaram a poder apresentar no seu espaço doméstico, passaram a definir uma outra forma de reclamar a importância histórica destes lugares seculares, contribuindo para a sua apropriação e aculturação.
Esta aliciante produção de souvenirs marcada pelo desenvolvimento em paralelo do turismo e da fotografia, estabeleceu um sistema de atracções, como distingue Peter Osborne, e um irreversível mecanismo de reprodução de reproduções, através do qual as sociedades modernas «se experimentam e reflectem a si mesmas, se reencenam como espectáculo», transformando os espectadores em «revisores permanentes da sua própria experiência».[1] Através destas imagens souvenirs, prosperou e prospera um turismo mediado, que ciclicamente substituiu a experiência da viagem pela reprodução e miniaturização técnica do monumento, iludindo a sua escala e admitindo a encenação da sua presença, noutro tempo e noutro lugar.
Assumindo que o «turismo produz objectos para turistas e turistas para objectos»,[2] é precisamente na fronteira do enquadramento político e social deste sistema circular que se pode escortinar a complexa realidade dos que comportam a sua existência, do outro lado do paraíso que permanece fora da mediação e da encenação.
As atracções turísticas que se instalam em regiões balneares como o Algarve desde a década de 1980 qualificam as práticas hedonistas contemporâneas e a fértil economia dos pequenos deleites e consumo condensado, garantindo a medida certa de artificialidade e distância sobre a cultura do território que ocupam. São uma tentativa de cristalização da imagem perfeita, de criação de um estereótipo que, como situa Osborne, «absorve a matéria histórica das coisas para melhor embalsamar o mito. Às vezes nada se move e nada envelhece, o trabalho da morte é imediatamente suspenso e simulado. A quietude do paraíso é também a quietude da morte, o fim do movimento e, claro, o fim do prazer».[3]
A edificação destes breviários do paraíso – lugares que se fazem à imagem de outros lugares e coisas transformadas em imagens de outras coisas – revelam igualmente a lógica de reflexibilidade que o turismo e a fotografia protagonizam, e a ressignificação da realidade na qual prosperam.
Na sombra desse imaginário, Lara Jacinto retrata a itinerância de pessoas que vivem e trabalham no concelho de Lagoa, oriundas de outros pontos do mundo, dando visibilidade a micro-histórias feitas de expectativas e voluntariedades, de quem escolheu migrar para integrar um imaginário que frequentemente se situa no verso desses paraísos artificiais.
Jacinto fotografa os vestígios de uma migração pouco reconhecida, olhando de frente para esse sistema de atracções, para dissipar a frequente sobreposição de dois contextos que raramente se cruzam. Por um lado, os que procuram satisfazer o desejo de uma experiência de autenticidade que imerge nestes teatros do exótico, seguros e regulados. Por outro lado, os que vislumbram uma oportunidade de trabalho, frequentemente sazonal e precário, em busca de melhores condições de vida, de liberdade ou da quimera que os acompanha desde a infância.
Ao registar a sobreposição e pluralidade destes territórios que o carácter ocasional e provisório do deslocamento implica, olha para os espaços que prolongam a sua identidade tornando visível uma condição que é indecidível e inclassificável, como caracteriza Madan Sarup: «um estranho é alguém que se recusa a permanecer limitado à sua terra distante ou a afastar-se da nossa. Que está fisicamente perto, embora permaneça culturalmente distante (...) suspensos num espaço vazio entre a tradição que já deixaram e um modo de vida que teimosamente lhes nega o direito de entrada (...) uma anomalia entre o interior e o exterior, ordem e caos, amigo e inimigo».[4]
Os bastidores deste sistema de atracções formam uma paisagem intermitente, feita de ondulações culturais, económicas e sociais, onde se acomodam clichés de uma natureza longínqua – as pirâmides de areia, o deserto sem miragem ou as exíguas florestas tropicais a espigar no meio do resort – que parecem contrariar a sua intangibilidade e anonimato. Se, como refere Marie José Mondzain, «fazer uma imagem é colocar o homem no mundo como espectador»,[5] no actual contexto de pós-apropriação e de absoluta perda de referente, propriedade e geografia das maravilhas do oriente, podemos entender a circularidade desta premissa, pensando o espectador como alguém que faz imagens no rasto das imagens que vê e que o definem na assintonia entre saber e reconhecer, entre ver e pertencer.
Neste ensaio fotográfico sobre Lagoa (Algarve), não se vê o mar, mas antes a imponente fragilidade das pirâmides, e dos que as envolvem, onde o exótico existe e persiste numa série de migrações mundanas, de familiaridades elusivas, ocupando uma área cinzenta, não necessariamente feita de violentas mudanças, mas de pequenas deslocações. Olhamos para estas fotografias e o que encontramos não é a diferença entre dois lugares, mas o modo como, afinal, um lugar pode ser diferente e apartado de si mesmo.
Lara Jacinto, da série Paraíso, 2019–2020
[1] Peter Osborne, Travelling Light, Photography, Travel and Visual Culture. Manchester, Manchester University Press, 2000, p. 75.
[2] Ibid, p. 92.
[3] Ibid, p. 115.
[4] Madan Sarup (1993), «Home and Identity» in George Robertson; Melinda Mash, et. al, Travellers’ Tales, narratives of home and displacement. London, Routledge, 1994, p. 102.
[5] Marie-José Mondzain, Homo Spectator. Lisboa, Orfeu Negro, 2015
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Susana Lourenço Marques
A palavra turismo foi introduzida na língua francesa em 1841, dois anos depois de François Arago ter anunciado a invenção da fotografia perante uma plateia de cientistas, seduzidos pela possibilidade de reproduzirem fielmente os grandes monumentos de Gizé, Mênfis e Tebas. Numa alusão à Campanha do Egipto (1798–1801) empreendida por Napoleão Bonaparte, Arago defende a substituição do modelo pictórico pelo registo fotográfico, capaz de descrever fielmente as maravilhas do Oriente e de salvaguardar, mensurar e arquivar esse património artístico e cultural.
A proposta de transferir e tornar portável a experiência do lugar, alterando o modo de o olhar e conhecer, despertou a atenção de um público frequentemente desinteressado em se relacionar diretamente com a experiência da diferença, mas simultaneamente curioso pela acomodação do estranho e do exótico. Foi esta sedução que conduziu fotógrafos, um pouco de toda a Europa, a realizar longas viagens e extensos levantamentos que publicaram e comercializaram para representar as desejadas maravilhas do Oriente. As pequenas imagens do templo de Ramsés II ou das pirâmides de Gizé, que muitos passaram a poder apresentar no seu espaço doméstico, passaram a definir uma outra forma de reclamar a importância histórica destes lugares seculares, contribuindo para a sua apropriação e aculturação.
Esta aliciante produção de souvenirs marcada pelo desenvolvimento em paralelo do turismo e da fotografia, estabeleceu um sistema de atracções, como distingue Peter Osborne, e um irreversível mecanismo de reprodução de reproduções, através do qual as sociedades modernas «se experimentam e reflectem a si mesmas, se reencenam como espectáculo», transformando os espectadores em «revisores permanentes da sua própria experiência».[1] Através destas imagens souvenirs, prosperou e prospera um turismo mediado, que ciclicamente substituiu a experiência da viagem pela reprodução e miniaturização técnica do monumento, iludindo a sua escala e admitindo a encenação da sua presença, noutro tempo e noutro lugar.
Assumindo que o «turismo produz objectos para turistas e turistas para objectos»,[2] é precisamente na fronteira do enquadramento político e social deste sistema circular que se pode escortinar a complexa realidade dos que comportam a sua existência, do outro lado do paraíso que permanece fora da mediação e da encenação.
As atracções turísticas que se instalam em regiões balneares como o Algarve desde a década de 1980 qualificam as práticas hedonistas contemporâneas e a fértil economia dos pequenos deleites e consumo condensado, garantindo a medida certa de artificialidade e distância sobre a cultura do território que ocupam. São uma tentativa de cristalização da imagem perfeita, de criação de um estereótipo que, como situa Osborne, «absorve a matéria histórica das coisas para melhor embalsamar o mito. Às vezes nada se move e nada envelhece, o trabalho da morte é imediatamente suspenso e simulado. A quietude do paraíso é também a quietude da morte, o fim do movimento e, claro, o fim do prazer».[3]
A edificação destes breviários do paraíso – lugares que se fazem à imagem de outros lugares e coisas transformadas em imagens de outras coisas – revelam igualmente a lógica de reflexibilidade que o turismo e a fotografia protagonizam, e a ressignificação da realidade na qual prosperam.
Na sombra desse imaginário, Lara Jacinto retrata a itinerância de pessoas que vivem e trabalham no concelho de Lagoa, oriundas de outros pontos do mundo, dando visibilidade a micro-histórias feitas de expectativas e voluntariedades, de quem escolheu migrar para integrar um imaginário que frequentemente se situa no verso desses paraísos artificiais.
Jacinto fotografa os vestígios de uma migração pouco reconhecida, olhando de frente para esse sistema de atracções, para dissipar a frequente sobreposição de dois contextos que raramente se cruzam. Por um lado, os que procuram satisfazer o desejo de uma experiência de autenticidade que imerge nestes teatros do exótico, seguros e regulados. Por outro lado, os que vislumbram uma oportunidade de trabalho, frequentemente sazonal e precário, em busca de melhores condições de vida, de liberdade ou da quimera que os acompanha desde a infância.
Ao registar a sobreposição e pluralidade destes territórios que o carácter ocasional e provisório do deslocamento implica, olha para os espaços que prolongam a sua identidade tornando visível uma condição que é indecidível e inclassificável, como caracteriza Madan Sarup: «um estranho é alguém que se recusa a permanecer limitado à sua terra distante ou a afastar-se da nossa. Que está fisicamente perto, embora permaneça culturalmente distante (...) suspensos num espaço vazio entre a tradição que já deixaram e um modo de vida que teimosamente lhes nega o direito de entrada (...) uma anomalia entre o interior e o exterior, ordem e caos, amigo e inimigo».[4]
Os bastidores deste sistema de atracções formam uma paisagem intermitente, feita de ondulações culturais, económicas e sociais, onde se acomodam clichés de uma natureza longínqua – as pirâmides de areia, o deserto sem miragem ou as exíguas florestas tropicais a espigar no meio do resort – que parecem contrariar a sua intangibilidade e anonimato. Se, como refere Marie José Mondzain, «fazer uma imagem é colocar o homem no mundo como espectador»,[5] no actual contexto de pós-apropriação e de absoluta perda de referente, propriedade e geografia das maravilhas do oriente, podemos entender a circularidade desta premissa, pensando o espectador como alguém que faz imagens no rasto das imagens que vê e que o definem na assintonia entre saber e reconhecer, entre ver e pertencer.
Neste ensaio fotográfico sobre Lagoa (Algarve), não se vê o mar, mas antes a imponente fragilidade das pirâmides, e dos que as envolvem, onde o exótico existe e persiste numa série de migrações mundanas, de familiaridades elusivas, ocupando uma área cinzenta, não necessariamente feita de violentas mudanças, mas de pequenas deslocações. Olhamos para estas fotografias e o que encontramos não é a diferença entre dois lugares, mas o modo como, afinal, um lugar pode ser diferente e apartado de si mesmo.
[1] Peter Osborne, Travelling Light, Photography, Travel and Visual Culture. Manchester, Manchester University Press, 2000, p. 75.
[2] Ibid, p. 92.
[3] Ibid, p. 115.
[4] Madan Sarup (1993), «Home and Identity» in George Robertson; Melinda Mash, et. al, Travellers’ Tales, narratives of home and displacement. London, Routledge, 1994, p. 102.
[5] Marie-José Mondzain, Homo Spectator. Lisboa, Orfeu Negro, 2015
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
Avenida Rodrigues de Freitas, 265
4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020