Vera Carmo
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No final dos anos noventa, no bar da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, um café custava trinta e cinco escudos em moedas iguais às que figuram no videoclip de António Olaio, What do You Want for Christmas?. Desprovidas de valor de troca, a contemplação das moedas recorda um passado ainda recente, mas cujo paradigma social sucumbiu à maioridade da tecnologia digital, atingida no virar de século.
É uma banalidade afirmar que a contínua sofisticação das ferramentas de captação e produção de conteúdos, bem como dos canais de circulação, promoveu a omnipresença da imagem no quotidiano. Porém, talvez uma das consequências mais interessantes deste estado de coisas nos dias que correm seja a verdadeira diluição da fronteira entre imagem e vida real. A rápida resposta do mundo desenvolvido à pandemia, impondo a utilização de ferramentas de transmissão de vídeo em directo, veio denunciar um processo já em curso: a conversão do corpo em código binário e a substituição da experiência do lugar pela experiência do ecrã. A constante sobreposição entre o real e a sua imagem alterou significativamente o impacto efectivo de ambos: uma realidade continuamente mediada sofre de uma consciência de si que é, em grande parte, incompatível com a espontaneidade do dia-a-dia. A imagem, por sua vez, ao alcançar o imediatismo, vê-se privada do seu potencial narrativo porque abandona a esfera da representação e passa a integrar a longa lista de factos do quotidiano.
As imagens têm sido temidas porque entendidas como redutoras dos nossos sentidos e percepção. Para Platão, por exemplo, não passavam de imitações de segunda categoria do real e impediam o conhecimento da verdadeira essência do mundo. No ensaio seminal A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, Walter Benjamin defende que a circulação massiva de fotografias de obras de arte as desprovia de aura, banalizando-as e empobrecendo a experiência do seu encontro. Baudrillard, já nos anos mil novecentos e oitenta, argumentou militantemente os perigos de uma existência em simulacro. Contudo, avisos e protestos, as relações do indivíduo com o mundo são, hoje, invariavelmente mediadas, em menor ou maior grau, pelo vídeo e pela fotografia. Torna-se, então, talvez mais urgente do que na antiguidade clássica, ou em meados do século XX, repensar criticamente a criação, produção e circulação das imagens.
A exposição What do U Want 4 Xmas?, patente no espaço Rampa, no Porto, entre Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021, procurou pensar a criação em vídeo em Portugal, a partir do trabalho de um grupo de artistas sediados no Porto. Figuraram obras de António Olaio, Carla Cruz & Ângelo Ferreira de Sousa, Cristina Mateus, Fernando José Pereira, Hernâni Reis Baptista, Margarida Paiva, Maria Trabulo, Paulo Mendes e Tânia Dinis. Não se tratou de uma mostra exaustiva, nem esse poderia ser o âmbito de uma exposição desta dimensão. O propósito foi pensar o processo de colonização da vida diária pelo vídeo nas últimas três décadas, confrontando obras de arte que ecoam o reconhecimento do seu protagonismo através da apropriação de modelos como o videoclip, o documentário ou a publicidade, e/ou explorando a linguagem audiovisual nas suas relações pré-estabelecidas, procurando denunciar aquilo que ela tem de normativo.
A opção por artistas sediados ou com relação com a cidade invicta fez eco, por um lado, da importância que a Faculdade de Belas Artes do Porto e a Cooperativa Árvore desempenharam na implementação do vídeo como ferramenta de criação artística, e, por outro lado, de um imperativo de descentralização das narrativas sobre a arte contemporânea em Portugal.
Procurou esboçar-se, também, um panorama geracional que acabou por se tornar manifesto nas diferentes relações que se estabelecem com a imagem e o aparato tecnológico. Se as opções que poderemos apelidar de experimentais, como a instalação, a colagem ou a animação, marcam nitidamente a geração de noventa, os artistas que estão, hoje, no início da sua prática, apresentam, por sua vez, uma abordagem que mimetiza a utilização do vídeo na cultura de massas.
Assim, o vídeo, no universo das artes plásticas, parece ter percorrido um caminho inverso ao das restantes disciplinas, começando na abstracção para culminar num registo altamente dependente do referente, quase documental. Surge, hoje, como ferramenta de eleição para contar o quotidiano. Por isso, a seleção das obras para What do U Want 4 Xmas? respondeu ainda a um interesse pelo sublinhar de narrativas individuais que ecoam inquietações maiores.
No primeiro núcleo da exposição era evidente a relação entre prática artística e participação na vida social e política. Noite na Terra de Carla Cruz e Ângelo Ferreira de Sousa, How Green Was My Valley – Europa 2005–2017 de Paulo Mendes e Escavando o Deserto de Maria Trabulo são obras que convocam diferentes episódios e períodos de descontentamento e instabilidade social. O primeiro testemunha o longo período de estagnação imposto à cidade do Porto por um executivo camarário que será lembrado pelo desinvestimento na cultura. O segundo propõe uma reflexão em torno da incapacidade que a Europa tem demonstrado em lidar com a questão da imigração. O terceiro aborda a realidade sociopolítica do Irão através de uma investigação em torno da colecção do Museu de Arte Contemporânea de Teerão.
Os vídeos foram instalados de modo a traçarem entre si um “itinerário do conflito” iniciado no Porto com Noite na Terra, atravessando o continente europeu em How Green Was My Valley – Europa 2005–2017 e terminando no médio oriente de Escavando o Deserto. O título do vídeo de Carla Cruz e Ângelo Ferreira de Sousa é emprestado de um filme de Jim Jarmusch que narra as peripécias de cinco taxistas em Los Angeles, Nova Iorque, Paris, Roma e Helsínquia. A apropriação acrescenta o Porto a estas rotas, numa comparação entre as cidades vivas de Jarmusch e uma invicta esquecida de si própria. Coincidentemente, é com uma viagem de carro, também à noite, que How Green Was My Valley – Europa 2005–2017 se inicia. Paulo Mendes conduz ao longo da fronteira entre Portugal e Espanha. O registo do percurso é intercalado com imagens de centenas de imigrantes a tentar cruzar as fronteiras de Ceuta e Melila, a que se seguem gravações das intervenções da polícia francesa durante os conflitos raciais em Paris e, finalmente, da guerra no médio oriente: imagens aéreas do deserto, atravessado por tanques e explosões, que vão contrastar com a Teerão intimista filmada por Maria Trabulo.
No segundo núcleo expositivo, What do You Want for Christmas? de António Olaio, The (distorted) Mirror de Fernando José Pereira e Air Monarch de Hernâni Reis Baptista partilham o facto de promoverem a reflexão sobre as diferentes repercussões da relação que os indivíduos mantêm com o capital, desde a comodificação das identidades colectivas e individuais, até ao exercício da acumulação de riqueza por si só sem qualquer outra finalidade que não a de acumular ainda mais.
Também aqui, a selecção tomou por base um possível cerzir do denominador comum, iniciando-se o percurso expositivo com a obra de Olaio, cujo jingle melancólico se fazia ouvir, em loop, no espaço – What do you want for Christmas? / – I want two pairs of shoes, one to wear and one to lose –, embalando o corpo de Reis Baptista a rodar sobre si mesmo, tentando equilibrar-se sobre dois pares de sapatos (as Air Monarch e os sapatos de cristal), num óbvio display do corpo como mercadoria. A lógica visual e textual do comércio e consumo revelava-se finalmente em toda a sua força na apropriação por Fernando José Pereira de um anúncio publicitário do Lloyd’s Bank realizado no final dos anos noventa como voz off do vídeo The (distorted) Mirror. O anúncio incitava ao investimento na bolsa de valores como estratégia para acumular fortuna, recorrendo ao relato de uma história de sucesso protagonizada por um jovem casal de classe média. É o marido que nos interpela, notoriamente orgulhoso do seu espírito empreendedor, apresentando-se ao leitor como um Dinkie (double income, no kids) por oposição a Yuppie (Young Urban Profissional). As três obras recorrem a um humor subtil para comentar uma estrutura social quase beckettiana, organizada em torno de práticas de consumo.
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What do U Want 4 Xmas? (1.ª Parte), vista de instalação:
Paulo Mendes, How Green Was My Valley – Europa 2005–2017, 2005/2017
Carla Cruz & Ângelo Ferreira de Sousa, Noite na Terra, 2006
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What do U Want 4 Xmas? (1.ª Parte), vista de instalação:
Paulo Mendes, How Green Was My Valley – Europa 2005–2017, 2005/2017
Maria Trabulo, Escavando o Deserto, 2018
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What do U Want 4 Xmas? (3.ª Parte), vista de instalação:
Tânia Dinis, Laura, 2017
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What do U Want 4 Xmas? (3.ª Parte), vista de instalação:
Margarida Paiva, I Will Hurt You Before You Hurt Me, 2013
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What do U Want 4 Xmas? (3.ª Parte), vista de instalação:
Cristina Mateus, Sim-Não, 1996
Tânia Dinis, Laura, 2017
No terceiro e último núcleo, as obras Sim-Não de Cristina Mateus, I Will Hurt You Before You Hurt Me de Margarida Paiva e Laura de Tânia Dinis comentam o papel da mulher nas sociedades contemporâneas, numa reavaliação de preconceitos e lugares comuns. À selecção das obras impôs-se a expectativa de encontrar um olhar feminino por oposição ao male gaze que ainda domina as representações da mulher na cultura ocidental. Assim, além de ser comum aos três vídeos a exploração de dados biográficos para reconstituir experiências ou histórias de mulheres pouco convencionais, observamos um uso particular dos instrumentos ópticos, da linguagem fílmica, ou dos dispositivos de transmissão.
Em Sim-Não, Cristina Mateus interpela-nos num auto-retrato que toma a forma de uma vídeo-instalação: dois monitores, suspensos do tecto, frente a frente, à altura dos olhos de um espectador de estatura média, enquadram, em tamanho real, a face da artista que pronuncia as palavras sim e não. O rosto falante de Sim-Não afronta as representações hipersexualizadas da mulher, habituais no imaginário popular. É flagrante a ausência do corpo, no lugar do qual nos é oferecido o espaço vazio, sabotando a possibilidade do desejo. A cabeça, por seu lado, impõe-se a três dimensões, no espaço dos monitores, e o resgate da mulher à condição de sujeito é, finalmente, rematado pela construção de um olhar que se fixa no espectador anulando qualquer investimento voyeurístico.
I Will Hurt You Before You Hurt Me encena excertos de entrevistas a mulheres que foram condenadas por homicídio. Margarida Paiva, que há muito se apropria das estratégias do cinema mainstream, recorre ao close-up de forma quase abusiva, encarnando o olhar do entrevistador, atento à linguagem não-verbal das suas interlocutoras: os braços cruzados, os dedos que se entrelaçam, a lágrima que escorre dos cantos dos olhos. As protagonistas de Margarida Paiva, no exercício da violência, obrigam-nos ao reconhecimento de complexidade e poder raramente afectas ao feminino.
Laura parte de um álbum de fotografias encontrado e reconstrói a história da mulher que mais vezes figura no conjunto das imagens. Tânia Dinis utiliza uma lupa, evocando o olhar que fotografa, para escrutinar as fotografias que passam, umas a seguir às outras, sob a lente, revelando inscrições em t-shirts e tabuletas de cafés. É, talvez, na voz off de Laura que melhor se resume a crítica da condição de mulher, transversal a todo este núcleo: «Sabia que nasceu personagem, figuração e desfiguração, (...) o pequeno esplendor da mercadoria que um dia vai parar à vida alheia», mas preferiu «responder aos solitários na mesmíssima moeda».
What do U Want 4 Xmas? constituiu-se como um exercício de levantamento de relações e formulação de hipóteses ainda por testar sobre o protagonismo do vídeo tanto na arte como na sociedade. O propósito foi o de dar a ver um panorama no seu conjunto, partindo de alguns trabalhos escolhidos pela forma como, por um lado, permitem, em justaposição, intuir recentes desenvolvimentos no uso do vídeo e, por outro lado, revelar coincidências de temas e preocupações sociopolíticas que permanecem transversais ao longo destas décadas.
Situação Crítica
Estética e Hospitalidade
Rosa Benitez Andrés
Além do fotograma
Susana S. Martins
Da pandemia das imagens às imagens necessárias
Fernando José Pereira
La courbe des lumières
Vítor Almeida
O azul das pirâmides
Susana Lourenço Marques
Thriller, suspense e livros de fotografia
Celia Vega Pérez & Luis Deltell
Vera Carmo
No final dos anos noventa, no bar da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, um café custava trinta e cinco escudos em moedas iguais às que figuram no videoclip de António Olaio, What do You Want for Christmas?. Desprovidas de valor de troca, a contemplação das moedas recorda um passado ainda recente, mas cujo paradigma social sucumbiu à maioridade da tecnologia digital, atingida no virar de século.
É uma banalidade afirmar que a contínua sofisticação das ferramentas de captação e produção de conteúdos, bem como dos canais de circulação, promoveu a omnipresença da imagem no quotidiano. Porém, talvez uma das consequências mais interessantes deste estado de coisas nos dias que correm seja a verdadeira diluição da fronteira entre imagem e vida real. A rápida resposta do mundo desenvolvido à pandemia, impondo a utilização de ferramentas de transmissão de vídeo em directo, veio denunciar um processo já em curso: a conversão do corpo em código binário e a substituição da experiência do lugar pela experiência do ecrã. A constante sobreposição entre o real e a sua imagem alterou significativamente o impacto efectivo de ambos: uma realidade continuamente mediada sofre de uma consciência de si que é, em grande parte, incompatível com a espontaneidade do dia-a-dia. A imagem, por sua vez, ao alcançar o imediatismo, vê-se privada do seu potencial narrativo porque abandona a esfera da representação e passa a integrar a longa lista de factos do quotidiano.
As imagens têm sido temidas porque entendidas como redutoras dos nossos sentidos e percepção. Para Platão, por exemplo, não passavam de imitações de segunda categoria do real e impediam o conhecimento da verdadeira essência do mundo. No ensaio seminal A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, Walter Benjamin defende que a circulação massiva de fotografias de obras de arte as desprovia de aura, banalizando-as e empobrecendo a experiência do seu encontro. Baudrillard, já nos anos mil novecentos e oitenta, argumentou militantemente os perigos de uma existência em simulacro. Contudo, avisos e protestos, as relações do indivíduo com o mundo são, hoje, invariavelmente mediadas, em menor ou maior grau, pelo vídeo e pela fotografia. Torna-se, então, talvez mais urgente do que na antiguidade clássica, ou em meados do século XX, repensar criticamente a criação, produção e circulação das imagens.
A exposição What do U Want 4 Xmas?, patente no espaço Rampa, no Porto, entre Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021, procurou pensar a criação em vídeo em Portugal, a partir do trabalho de um grupo de artistas sediados no Porto. Figuraram obras de António Olaio, Carla Cruz & Ângelo Ferreira de Sousa, Cristina Mateus, Fernando José Pereira, Hernâni Reis Baptista, Margarida Paiva, Maria Trabulo, Paulo Mendes e Tânia Dinis. Não se tratou de uma mostra exaustiva, nem esse poderia ser o âmbito de uma exposição desta dimensão. O propósito foi pensar o processo de colonização da vida diária pelo vídeo nas últimas três décadas, confrontando obras de arte que ecoam o reconhecimento do seu protagonismo através da apropriação de modelos como o videoclip, o documentário ou a publicidade, e/ou explorando a linguagem audiovisual nas suas relações pré-estabelecidas, procurando denunciar aquilo que ela tem de normativo.
A opção por artistas sediados ou com relação com a cidade invicta fez eco, por um lado, da importância que a Faculdade de Belas Artes do Porto e a Cooperativa Árvore desempenharam na implementação do vídeo como ferramenta de criação artística, e, por outro lado, de um imperativo de descentralização das narrativas sobre a arte contemporânea em Portugal.
Procurou esboçar-se, também, um panorama geracional que acabou por se tornar manifesto nas diferentes relações que se estabelecem com a imagem e o aparato tecnológico. Se as opções que poderemos apelidar de experimentais, como a instalação, a colagem ou a animação, marcam nitidamente a geração de noventa, os artistas que estão, hoje, no início da sua prática, apresentam, por sua vez, uma abordagem que mimetiza a utilização do vídeo na cultura de massas.
Assim, o vídeo, no universo das artes plásticas, parece ter percorrido um caminho inverso ao das restantes disciplinas, começando na abstracção para culminar num registo altamente dependente do referente, quase documental. Surge, hoje, como ferramenta de eleição para contar o quotidiano. Por isso, a seleção das obras para What do U Want 4 Xmas? respondeu ainda a um interesse pelo sublinhar de narrativas individuais que ecoam inquietações maiores.
No primeiro núcleo da exposição era evidente a relação entre prática artística e participação na vida social e política. Noite na Terra de Carla Cruz e Ângelo Ferreira de Sousa, How Green Was My Valley – Europa 2005–2017 de Paulo Mendes e Escavando o Deserto de Maria Trabulo são obras que convocam diferentes episódios e períodos de descontentamento e instabilidade social. O primeiro testemunha o longo período de estagnação imposto à cidade do Porto por um executivo camarário que será lembrado pelo desinvestimento na cultura. O segundo propõe uma reflexão em torno da incapacidade que a Europa tem demonstrado em lidar com a questão da imigração. O terceiro aborda a realidade sociopolítica do Irão através de uma investigação em torno da colecção do Museu de Arte Contemporânea de Teerão.
Os vídeos foram instalados de modo a traçarem entre si um “itinerário do conflito” iniciado no Porto com Noite na Terra, atravessando o continente europeu em How Green Was My Valley – Europa 2005–2017 e terminando no médio oriente de Escavando o Deserto. O título do vídeo de Carla Cruz e Ângelo Ferreira de Sousa é emprestado de um filme de Jim Jarmusch que narra as peripécias de cinco taxistas em Los Angeles, Nova Iorque, Paris, Roma e Helsínquia. A apropriação acrescenta o Porto a estas rotas, numa comparação entre as cidades vivas de Jarmusch e uma invicta esquecida de si própria. Coincidentemente, é com uma viagem de carro, também à noite, que How Green Was My Valley – Europa 2005–2017 se inicia. Paulo Mendes conduz ao longo da fronteira entre Portugal e Espanha. O registo do percurso é intercalado com imagens de centenas de imigrantes a tentar cruzar as fronteiras de Ceuta e Melila, a que se seguem gravações das intervenções da polícia francesa durante os conflitos raciais em Paris e, finalmente, da guerra no médio oriente: imagens aéreas do deserto, atravessado por tanques e explosões, que vão contrastar com a Teerão intimista filmada por Maria Trabulo.
No segundo núcleo expositivo, What do You Want for Christmas? de António Olaio, The (distorted) Mirror de Fernando José Pereira e Air Monarch de Hernâni Reis Baptista partilham o facto de promoverem a reflexão sobre as diferentes repercussões da relação que os indivíduos mantêm com o capital, desde a comodificação das identidades colectivas e individuais, até ao exercício da acumulação de riqueza por si só sem qualquer outra finalidade que não a de acumular ainda mais.
Também aqui, a selecção tomou por base um possível cerzir do denominador comum, iniciando-se o percurso expositivo com a obra de Olaio, cujo jingle melancólico se fazia ouvir, em loop, no espaço – What do you want for Christmas? / – I want two pairs of shoes, one to wear and one to lose –, embalando o corpo de Reis Baptista a rodar sobre si mesmo, tentando equilibrar-se sobre dois pares de sapatos (as Air Monarch e os sapatos de cristal), num óbvio display do corpo como mercadoria. A lógica visual e textual do comércio e consumo revelava-se finalmente em toda a sua força na apropriação por Fernando José Pereira de um anúncio publicitário do Lloyd’s Bank realizado no final dos anos noventa como voz off do vídeo The (distorted) Mirror. O anúncio incitava ao investimento na bolsa de valores como estratégia para acumular fortuna, recorrendo ao relato de uma história de sucesso protagonizada por um jovem casal de classe média. É o marido que nos interpela, notoriamente orgulhoso do seu espírito empreendedor, apresentando-se ao leitor como um Dinkie (double income, no kids) por oposição a Yuppie (Young Urban Profissional). As três obras recorrem a um humor subtil para comentar uma estrutura social quase beckettiana, organizada em torno de práticas de consumo.
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
Avenida Rodrigues de Freitas, 265
4049-021 Porto
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020