THE EPILOGUE E A LES 8 AL BAR EUSEBI
Celia Vega Perez & Luis Deltell
Na fotografia, diz Roland Barthes, não há futuro[1]. Ao fixar um instante numa imagem fotográfica, o tempo pára e o devir parece ser negado, imortalizando «uma realidade que “não é mais” embora se reproduza infinitamente»[2]. A sua natureza, estática e instantânea, torna-a potencialmente a mais anti-narrativa das artes. Apesar disso, a fotografia actua como um gatilho para a narração. As imagens fotográficas, diz Susan Sontag, apesar de «em si mesmas não explicarem nada, são convites inesgotáveis à dedução, especulação e fantasia».[3]
A capacidade de evocar uma história a partir de uma única imagem multiplica-se quando as fotografias formam uma sequência e/ou são acompanhadas por palavras. Assim, o texto auxilia a ancoragem do significado das imagens fotográficas e potencializa a sua capacidade de narrar. Um dos primeiros modelos que ligou palavras e imagens foi o romance ilustrado que se revelou ineficaz pelas características formais da imagem fotográfica e da sua condição indexical, ou seja, como um traço da realidade, dificultando a criação de sequências narrativas fluídas.[4]
Mais eficaz é o modelo que o cinema propõe para narrar com imagens. Nas palavras de David Campany, «a construção elástica do espaço, do tempo e do movimento no cinema desempenhou um papel fundamental na reconfiguração da página».[5] Essa construção é realizada por intermédio da montagem que, de acordo com Eisenstein, não é uma simples técnica cinematográfica, mas o princípio essencial para a criação de uma linguagem, orquestrando o seu significado a partir de peças singulares como são os fotogramas.[6] O conceito de montagem ultrapassa, portanto, o cinematográfico e pode ser entendido como «um modelo de pensamento comum às artes visuais, à literatura, à rádio [e] ao cinema».[7]
O efeito de choque[8] proposto pelas vanguardas para montar objectos visuais – colagem (do movimento cubista ao futurista) e fotomontagem (do movimento dadaísta ao construtivista) – dará lugar a um outro tipo de montagem menos espectacular: a da acumulação, repetição e sequenciação. Nesse sentido, podemos falar de montagem quando nos referimos ao trabalho de fotógrafos como Walker Evans e, em particular, ao seu livro American Photographs. Nele, o leitor é convidado a descobrir as relações (nem sempre óbvias) entre a fotografia de uma página e as que a precedem e sucedem. Num ensaio que refere a obra, Lincoln Kirstein descreve a importância de entender o livro não como uma colecção de fotogra-
fias individuais, mas como uma narrativa na qual as imagens são parte de um todo coerente: «As imagens existem fisicamente no livro como impressões individuais separadas. Carecem da evidente continuidade da imagem em movimento e, pela sua natureza física, obrigam o espectador a percepcionar uma série de imagens como partes de um todo. Mas essas fotografias, necessariamente vistas individualmente, não são concebidas como imagens isoladas, captadas por uma câmara que gira indiscriminadamente de um lado para o outro. Na intenção e na prática, elas existem como uma colecção de afirmações que derivam e apresentam uma atitude consistente».[9]
Neste contexto, o livro de fotografia é entendido como «uma forma de arte autónoma, comparável a uma escultura, uma peça de teatro ou um filme» em que «as fotografias perdem o seu carácter fotográfico como coisas “em si mesmas” e convertem-se em partes, transferidas por tinta impressa, num evento dramático denominado livro».[10] O álbum de fotografias destaca-se como um dos meios de eleição para «organizar, de forma perfeitamente controlada, um conjunto de imagens que se podem montar, reagrupar, opor como achamos adequado, e com as quais construímos uma obra com tanta facilidade como um texto».[11]
Assim, nos livros de fotografia o todo torna-se mais importante do que as partes. Os autores de livros de fotografia trabalham por montagem e acumulação, ficando mais próximos do trabalho de romancistas e cineastas do que dos próprios fotógrafos – pelo menos como descritos por Julio Cortázar – e são, como contadores de histórias, «forçados a escolher e limitar uma imagem ou um determinado evento que seja significativo».[12] Ao trabalhar uma sequência, e não a imagem única, o fotógrafo torna-se um «editor, no sentido inglês do termo. Ele não é apenas o que prepara o livro para publicação, como no sentido francês [e português] do termo, mas aquele que reúne, selecciona e organiza a informação com o intuito de lhe dar um sentido».[13] Este é o mesmo que Masats referiu quando reconheceu que: «[…] Em determinado momento, a imagem fixa não é suficiente para um fotógrafo que procura a narração. Começa com a disposição nas páginas, com a sensação de movimento… O fotógrafo, aos poucos, vai conquistando espaço ao paginador: necessita que uma imagem seja seguida por outra imagem e a seguir outra… e se essa imagem for disposta com diferentes escalas? O fotógrafo começa a perceber que as fotografias são consequentes umas das outras… É a necessidade de montagem que se introduz no trabalho do fotógrafo».[14]
Deste modo, a montagem converte-se numa das ferramentas fundacionais e fundamentais para a criação de histórias fotográficas e cinematográficas e no modelo predilecto para a criação dos livros de fotografia mais influentes do século XX, incluindo Life is Good & Good for you in New York: Trance, Witness, Revels (1956) de William Klein ou The Americans (1958) de Robert Frank. Estes livros «adquirem ritmo de página para página, criando crescendos e diminuendos de atividade pictórica que emulam o movimento e a dinâmica do cinema».[15]
O cinema continua a ser uma fonte de inspiração para o modo de montagem narrativa dos livros de fotografia.[16] Ao explicar a sequenciação de imagens, o designer Teun van der Heijden recorre à linguagem cinematográfica: «Se tens um grupo de pessoas numa fotografia e noutra fotografia aparece uma pessoa, podes usar isso como uma espécie de efeito zoom, mesmo que a pessoa da segunda fotografia não seja a mesma. Quando uma fotografia é radicalmente diferente da que a precede ou sucede, equipara-se a um corte rápido no cinema».[17] Mas, ao contrário do cinema, nos livros de fotografia é o leitor quem preenche as lacunas que se geram na passagem de uma imagem para outra. Essas lacunas e os seus efeitos foram teorizados na literatura por Wolfgang Iser a partir do conceito de espaços de indeterminação do filósofo polaco Roman Ingarden. O autor alemão conclui que o vazio de um texto não é negativo mas, pelo contrário, é voluntariamente colocado pelo autor para construir «toda uma rede de relações possíveis, cujo encanto reside no facto de que o leitor possa concretizar por si mesmo essas conexões».[18]
Estas elipses narrativas, inerentes à narrativa fotográfica, convidam os criadores a usar estruturas características do thriller e do filme noir, como são exemplo dois livros de fotografia, distintos entre si, mas que sustentam em comum a montagem geradora de suspense no leitor: The Epilogue (2014) de Laia Abril e A les 8 al Bar Eusebi (2020) de Salvi Danés.
The Epilogue conta a história de Cammy Robinson, uma jovem que faleceu aos 26 anos vítima de bulimia. O livro começa, como o próprio título sugere, após a morte de Cammy e a narrativa é apresentada por flashbacks através dos quais a vida da protagonista é reconstruída. Abril encontrou inspiração na literatura e principalmente no cinema e reconhece que «a narrativa [do livro] é muito influenciada por thrillers e mistério».[19] Nesse sentido, é fundamental que o leitor só seja informado sobre o transtorno alimentar que Cammy sofreu, no mesmo momento em que a família descobre a doença. Na primeira parte do livro, o leitor não sabe o que se está a passar, o que, de acordo com Abril, contribui para criar um sentimento de empatia para com os pais, familiares, amigos e vítimas colaterais da doença de Cammy.
A história é construída a partir de diversos materiais: receitas médicas, fotografias de família, reproduções do diário da protagonista, depoimentos de pessoas próximas, etc., e todas as decisões que Abril toma na criação do livro seguem uma lógica narrativa: «Nada no livro é aleatório ou puramente estético, e tudo tem uma razão de ser. Por vezes é mais racional, outras vezes mais emocional. Os desdobráveis [no livro] quebram a narrativa, do mesmo modo que os trágicos acontecimentos quebram a vida de alguém. E também escondem algo mais: o primeiro diagnóstico de Cammy, o lugar onde teve a sua primeira convulsão, o facto de ninguém querer viver com ela porque teve outra convulsão na casa onde vivia com os seus amigos, a sua morte. Bulimia é uma doença que consiste em esconder coisas e fingir que “está tudo bem”. Esta foi outra forma de colocar isso na mesa».[21]
Deste modo, o recurso ao suspense reforça formalmente um aspecto chave da doença: o encobrimento por parte do doente. Talvez a confissão mais chocante do projeto seja a da sua mãe, que tanto no livro como num vídeo promocional diz: «Para ser honesta, acho que não conheci realmente Cammy. Sinceramente, não sei se ela realmente conheceu alguém». O mistério, que aos poucos vai sendo revelado em The Epilogue é a própria doença que Cammy tentou ocultar – a bulimia – que vem finalmente à tona, rompendo com o tabu que a rodeia.
De modo semelhante pode encontrar-se algo póstumo na estrutura de A les 8 al Bar Eusebi. O bar que dá nome ao livro desapareceu há uma década. A prisão Modelo em Barcelona, outro espaço importante, foi encerrado anos antes da publicação deste livro. E o facto que inspira a história, a fuga de quarenta e cinco prisioneiros da prisão Modelo, ocorreu no final da década de 1970. Trata-se assim de elaborar uma ficção a partir do presente, invocando não tanto um acontecimento específico, mas uma certa atmosfera de suspense.
Para isso, Danés inspira-se na narrativa cinematográfica e, tal como Abril, organiza estrategicamente as imagens – em si imbuídas de mistério – para gerar suspense. Neste caso, e ao contrário de The Epilogue, quase não existe texto e quando aparece emerge sob a forma de slogans publicitários que, tal como as imagens, funcionam como pistas para dar informações ambíguas e nunca concluir ou desvendar o mistério. A condição documental da obra de Abril, na qual se narra uma história real que determina uma compreensão mais directa e literal por parte do leitor, implica que o texto situe explicitamente o que as imagens apenas podem sugerir. Como afirma Marie-Laure Ryan, ao falar da diferença entre narrativas visuais e verbais: «Com a sua combinação de desdobramento dinâmico e visualidade, o filme pode ser tão eficiente quanto as palavras para representar uma sucessão de eventos como “o rei morreu e depois a rainha morreu”, mas apenas as palavras podem dizer “o rei morreu e depois a rainha morreu de dor”, porque apenas a linguagem é capaz de explicitar a relação causal. Num filme (e ainda mais numa imagem estática), as relações causais entre acontecimentos devem ser deixadas para a interpretação do espectador e, sem uma narração em voz off, nunca podemos estar completamente seguros que foi a dor e não a doença que matou a rainha».[21]
Em The Epilogue, são necessárias certezas que A les 8 al Bar Eusebi pode prescindir, num livro em que tudo são emboscadas e no qual as personagens são totalmente alheias à trama. Os olhares de esguelha, planos-pormenor das mãos que parecem esconder alguma coisa, o pátio de uma prisão, ou um anúncio que diz “Siga-me… Vamos para o Brasil”, tudo faz suspeitar que atrás do que vemos se oculta algo. Mas esse algo está na nossa imaginação, e se a narrativa funciona, e podemos inferir uma história mais ou menos unificada a partir das imagens fotográficas, é em parte porque o thriller cinematográfico é um modelo culturalmente reconhecível para os leitores.
Ambos os livros, um de carácter documental e outro ficcional, são a confirmação das possibilidades narrativas que a fotografia oferece para construir histórias nas quais o mistério e a ambiguidade, próprios do filme noir, desempenham um papel fundamental. A montagem cinematográfica e o thriller revelam-se, neste contexto, como modelos de inspiração a partir dos quais é possível pensar a edição e sequenciação das imagens no livro.
1
2
1 Laia Abril, The Epilogue, 2014
2 Salvi Danés, A les 8 al Bar Eusebi, 2020
[1] Roland Barthes, La cámara lúcida. Nota sobre la fotografía. Barcelona, Paidós, 1990, p. 156.
[2] Eduardo Rodríguez Merchán, Lidia Esteban, y Celia Vega, «La idea del tiempo en fotografía y cine», Fotocinema. Revista científica de cine y fotografía, nº 12, 2016, p. 3.
[3] Susan Sontag, Sobre la fotografía. Cidade do México, Alfaguara, 2006, p. 42.
[4] Joel Smith, «More than One : Sources of Serialism», in More Than One: Photographs in Sequence. Princeton, Princeton University Art Museum, 2008, p. 10.
[5] David Campany, Photography and Cinema. Londres: Reaktion Books Ltd, 2008, p. 62.
[6] Ana María Guasch, Arte y Archivo, 1920–2010. Genealogías, Tipologías y Discontinuidades. Madrid, Akal, 2011, p. 111.
[7] Jean-François Chevrier, La fotografía entre las bellas artes y los medios de comunicación. Barcelona, Gustavo Gili, 2007.
[8] Benjamin H. D. Buchloh, Formalismo e historicidad. Modelos y métodos en el arte del siglo XX. Madrid, Akal, 2004.
[9] Lincoln Kirstein, «Photographs of America: Walker Evans», in American Photographs. Nova Iorque, The Museum of Modern Art, 1938, p. 192–193.
[10] Garry Badger e Martin Parr, The Photobook: A History, vol. 1. Londres, Phaidon, p. 7.
[11] Olivier Lugon, «“Photo–Inflation”. La profusion des images dans la photographie allemande, 1925–1945», in Les Cahiers du musée d’art moderne, nº 49, 1994, p. 101–102.
[12] Julio Cortázar, «Algunos aspectos del cuento», in Cuadernos Hispanoamericanos. Revista mensual de Cultura Hispánica, nº 255, 1971, p. 406.
[13] Clément Chéroux, «Vous appuyez sur le bouton, nous faisons le reste!», in Mutations. Perspectives sur la photographie. Paris, Paris Photo/ Steidl, 2011, p. 246.
[14] Laura Terré, Historia del grupo fotográfico AFAL, 1956–1963. Sevilha, Photovision, 2006, p. 296.
[15] Emily King, Look, «No Words!», in Put About: A Critical Anthology on Independent Publishing, ed. por Maria Fusco e Ian Hunt. Londres, Book Works, 2004, p. 32.
[16] Marta García Sahagún e Celia Vega Pérez, «Dos interpretaciones del (mismo) espacio. El paisaje mítico norteamericano en el cine (Malas Tierras, Badlands, Terrence Malick, 1973) y en el fotolibro (Redheaded Peckerwood, Christian Patterson, 2011)», in Fotocinema. Revista científica de cine y fotografía, nº 16.16, 2018, p. 350–79.
[17] Holly Stuart Hughes, «The Art and Process of Sequencing Photo Books», PDN, 2018. Disponível em: https://www.pdnonline.com/features/photo-books/art-process-sequencing-photo-books/.
[18] Wolfgang Iser, L’appel du texte. L’indétermination comme condition d’effet esthétique de la prose littéraire. Paris, Allia, 2002,
p. 31–32.
[19] Op. Cit., Stuart Hughes.
[20] Jörg Colberg, Understanding Photobooks: The Form and Content of the Photographic Book. Londres/Nova Iorque, Routledge, 2017, p. 37.
[21] Marie-Laure Ryan, «Narration in Various Media», in The Living Handbook of Narratology, ed. por Peter Hühn et al. Hamburgo, Hamburg University Press, 2013. Disponível em: https://www.lhn.uni-hamburg.de/node/53.html.
Situação Crítica
Estética e Hospitalidade
Rosa Benitez Andrés
Além do fotograma
Susana S. Martins
What do U Want 4 Xmas?
Vera Carmo
O azul das pirâmides
Susana Lourenço Marques
Da pandemia das imagens às imagens necessárias
Fernando José Pereira
Em defesa das imagens pobres
Hito Steyerl
La courbe des lumières
Vítor Almeida
O azul das pirâmides
Susana Lourenço Marques
THE EPILOGUE E A LES 8 AL BAR EUSEBI
Celia Vega Perez & Luis Deltell
Na fotografia, diz Roland Barthes, não há futuro[1]. Ao fixar um instante numa imagem fotográfica, o tempo pára e o devir parece ser negado, imortalizando «uma realidade que “não é mais” embora se reproduza infinitamente»[2]. A sua natureza, estática e instantânea, torna-a potencialmente a mais anti-narrativa das artes. Apesar disso, a fotografia actua como um gatilho para a narração. As imagens fotográficas, diz Susan Sontag, apesar de «em si mesmas não explicarem nada, são convites inesgotáveis à dedução, especulação e fantasia».[3]
A capacidade de evocar uma história a partir de uma única imagem multiplica-se quando as fotografias formam uma sequência e/ou são acompanhadas por palavras. Assim, o texto auxilia a ancoragem do significado das imagens fotográficas e potencializa a sua capacidade de narrar. Um dos primeiros modelos que ligou palavras e imagens foi o romance ilustrado que se revelou ineficaz pelas características formais da imagem fotográfica e da sua condição indexical, ou seja, como um traço da realidade, dificultando a criação de sequências narrativas fluídas.[4]
Mais eficaz é o modelo que o cinema propõe para narrar com imagens. Nas palavras de David Campany, «a construção elástica do espaço, do tempo e do movimento no cinema desempenhou um papel fundamental na reconfiguração da página».[5] Essa construção é realizada por intermédio da montagem que, de acordo com Eisenstein, não é uma simples técnica cinematográfica, mas o princípio essencial para a criação de uma linguagem, orquestrando o seu significado a partir de peças singulares como são os fotogramas.[6] O conceito de montagem ultrapassa, portanto, o cinematográfico e pode ser entendido como «um modelo de pensamento comum às artes visuais, à literatura, à rádio [e] ao cinema».[7]
O efeito de choque[8] proposto pelas vanguardas para montar objectos visuais – colagem (do movimento cubista ao futurista) e fotomontagem (do movimento dadaísta ao construtivista) – dará lugar a um outro tipo de montagem menos espectacular: a da acumulação, repetição e sequenciação. Nesse sentido, podemos falar de montagem quando nos referimos ao trabalho de fotógrafos como Walker Evans e, em particular, ao seu livro American Photographs. Nele, o leitor é convidado a descobrir as relações (nem sempre óbvias) entre a fotografia de uma página e as que a precedem e sucedem. Num ensaio que refere a obra, Lincoln Kirstein descreve a importância de entender o livro não como uma colecção de fotogra-
fias individuais, mas como uma narrativa na qual as imagens são parte de um todo coerente: «As imagens existem fisicamente no livro como impressões individuais separadas. Carecem da evidente continuidade da imagem em movimento e, pela sua natureza física, obrigam o espectador a percepcionar uma série de imagens como partes de um todo. Mas essas fotografias, necessariamente vistas individualmente, não são concebidas como imagens isoladas, captadas por uma câmara que gira indiscriminadamente de um lado para o outro. Na intenção e na prática, elas existem como uma colecção de afirmações que derivam e apresentam uma atitude consistente».[9]
Neste contexto, o livro de fotografia é entendido como «uma forma de arte autónoma, comparável a uma escultura, uma peça de teatro ou um filme» em que «as fotografias perdem o seu carácter fotográfico como coisas “em si mesmas” e convertem-se em partes, transferidas por tinta impressa, num evento dramático denominado livro».[10] O álbum de fotografias destaca-se como um dos meios de eleição para «organizar, de forma perfeitamente controlada, um conjunto de imagens que se podem montar, reagrupar, opor como achamos adequado, e com as quais construímos uma obra com tanta facilidade como um texto».[11]
Assim, nos livros de fotografia o todo torna-se mais importante do que as partes. Os autores de livros de fotografia trabalham por montagem e acumulação, ficando mais próximos do trabalho de romancistas e cineastas do que dos próprios fotógrafos – pelo menos como descritos por Julio Cortázar – e são, como contadores de histórias, «forçados a escolher e limitar uma imagem ou um determinado evento que seja significativo».[12] Ao trabalhar uma sequência, e não a imagem única, o fotógrafo torna-se um «editor, no sentido inglês do termo. Ele não é apenas o que prepara o livro para publicação, como no sentido francês [e português] do termo, mas aquele que reúne, selecciona e organiza a informação com o intuito de lhe dar um sentido».[13] Este é o mesmo que Masats referiu quando reconheceu que: «[…] Em determinado momento, a imagem fixa não é suficiente para um fotógrafo que procura a narração. Começa com a disposição nas páginas, com a sensação de movimento… O fotógrafo, aos poucos, vai conquistando espaço ao paginador: necessita que uma imagem seja seguida por outra imagem e a seguir outra… e se essa imagem for disposta com diferentes escalas? O fotógrafo começa a perceber que as fotografias são consequentes umas das outras… É a necessidade de montagem que se introduz no trabalho do fotógrafo».[14]
Deste modo, a montagem converte-se numa das ferramentas fundacionais e fundamentais para a criação de histórias fotográficas e cinematográficas e no modelo predilecto para a criação dos livros de fotografia mais influentes do século XX, incluindo Life is Good & Good for you in New York: Trance, Witness, Revels (1956) de William Klein ou The Americans (1958) de Robert Frank. Estes livros «adquirem ritmo de página para página, criando crescendos e diminuendos de atividade pictórica que emulam o movimento e a dinâmica do cinema».[15]
O cinema continua a ser uma fonte de inspiração para o modo de montagem narrativa dos livros de fotografia.[16] Ao explicar a sequenciação de imagens, o designer Teun van der Heijden recorre à linguagem cinematográfica: «Se tens um grupo de pessoas numa fotografia e noutra fotografia aparece uma pessoa, podes usar isso como uma espécie de efeito zoom, mesmo que a pessoa da segunda fotografia não seja a mesma. Quando uma fotografia é radicalmente diferente da que a precede ou sucede, equipara-se a um corte rápido no cinema».[17] Mas, ao contrário do cinema, nos livros de fotografia é o leitor quem preenche as lacunas que se geram na passagem de uma imagem para outra. Essas lacunas e os seus efeitos foram teorizados na literatura por Wolfgang Iser a partir do conceito de espaços de indeterminação do filósofo polaco Roman Ingarden. O autor alemão conclui que o vazio de um texto não é negativo mas, pelo contrário, é voluntariamente colocado pelo autor para construir «toda uma rede de relações possíveis, cujo encanto reside no facto de que o leitor possa concretizar por si mesmo essas conexões».[18]
Estas elipses narrativas, inerentes à narrativa fotográfica, convidam os criadores a usar estruturas características do thriller e do filme noir, como são exemplo dois livros de fotografia, distintos entre si, mas que sustentam em comum a montagem geradora de suspense no leitor: The Epilogue (2014) de Laia Abril e A les 8 al Bar Eusebi (2020) de Salvi Danés.
The Epilogue conta a história de Cammy Robinson, uma jovem que faleceu aos 26 anos vítima de bulimia. O livro começa, como o próprio título sugere, após a morte de Cammy e a narrativa é apresentada por flashbacks através dos quais a vida da protagonista é reconstruída. Abril encontrou inspiração na literatura e principalmente no cinema e reconhece que «a narrativa [do livro] é muito influenciada por thrillers e mistério».[19] Nesse sentido, é fundamental que o leitor só seja informado sobre o transtorno alimentar que Cammy sofreu, no mesmo momento em que a família descobre a doença. Na primeira parte do livro, o leitor não sabe o que se está a passar, o que, de acordo com Abril, contribui para criar um sentimento de empatia para com os pais, familiares, amigos e vítimas colaterais da doença de Cammy.
A história é construída a partir de diversos materiais: receitas médicas, fotografias de família, reproduções do diário da protagonista, depoimentos de pessoas próximas, etc., e todas as decisões que Abril toma na criação do livro seguem uma lógica narrativa: «Nada no livro é aleatório ou puramente estético, e tudo tem uma razão de ser. Por vezes é mais racional, outras vezes mais emocional. Os desdobráveis [no livro] quebram a narrativa, do mesmo modo que os trágicos acontecimentos quebram a vida de alguém. E também escondem algo mais: o primeiro diagnóstico de Cammy, o lugar onde teve a sua primeira convulsão, o facto de ninguém querer viver com ela porque teve outra convulsão na casa onde vivia com os seus amigos, a sua morte. Bulimia é uma doença que consiste em esconder coisas e fingir que “está tudo bem”. Esta foi outra forma de colocar isso na mesa».[21]
Deste modo, o recurso ao suspense reforça formalmente um aspecto chave da doença: o encobrimento por parte do doente. Talvez a confissão mais chocante do projeto seja a da sua mãe, que tanto no livro como num vídeo promocional diz: «Para ser honesta, acho que não conheci realmente Cammy. Sinceramente, não sei se ela realmente conheceu alguém». O mistério, que aos poucos vai sendo revelado em The Epilogue é a própria doença que Cammy tentou ocultar – a bulimia – que vem finalmente à tona, rompendo com o tabu que a rodeia.
De modo semelhante pode encontrar-se algo póstumo na estrutura de A les 8 al Bar Eusebi. O bar que dá nome ao livro desapareceu há uma década. A prisão Modelo em Barcelona, outro espaço importante, foi encerrado anos antes da publicação deste livro. E o facto que inspira a história, a fuga de quarenta e cinco prisioneiros da prisão Modelo, ocorreu no final da década de 1970. Trata-se assim de elaborar uma ficção a partir do presente, invocando não tanto um acontecimento específico, mas uma certa atmosfera de suspense.
Para isso, Danés inspira-se na narrativa cinematográfica e, tal como Abril, organiza estrategicamente as imagens – em si imbuídas de mistério – para gerar suspense. Neste caso, e ao contrário de The Epilogue, quase não existe texto e quando aparece emerge sob a forma de slogans publicitários que, tal como as imagens, funcionam como pistas para dar informações ambíguas e nunca concluir ou desvendar o mistério. A condição documental da obra de Abril, na qual se narra uma história real que determina uma compreensão mais directa e literal por parte do leitor, implica que o texto situe explicitamente o que as imagens apenas podem sugerir. Como afirma Marie-Laure Ryan, ao falar da diferença entre narrativas visuais e verbais: «Com a sua combinação de desdobramento dinâmico e visualidade, o filme pode ser tão eficiente quanto as palavras para representar uma sucessão de eventos como “o rei morreu e depois a rainha morreu”, mas apenas as palavras podem dizer “o rei morreu e depois a rainha morreu de dor”, porque apenas a linguagem é capaz de explicitar a relação causal. Num filme (e ainda mais numa imagem estática), as relações causais entre acontecimentos devem ser deixadas para a interpretação do espectador e, sem uma narração em voz off, nunca podemos estar completamente seguros que foi a dor e não a doença que matou a rainha».[21]
Em The Epilogue, são necessárias certezas que A les 8 al Bar Eusebi pode prescindir, num livro em que tudo são emboscadas e no qual as personagens são totalmente alheias à trama. Os olhares de esguelha, planos-pormenor das mãos que parecem esconder alguma coisa, o pátio de uma prisão, ou um anúncio que diz “Siga-me… Vamos para o Brasil”, tudo faz suspeitar que atrás do que vemos se oculta algo. Mas esse algo está na nossa imaginação, e se a narrativa funciona, e podemos inferir uma história mais ou menos unificada a partir das imagens fotográficas, é em parte porque o thriller cinematográfico é um modelo culturalmente reconhecível para os leitores.
Ambos os livros, um de carácter documental e outro ficcional, são a confirmação das possibilidades narrativas que a fotografia oferece para construir histórias nas quais o mistério e a ambiguidade, próprios do filme noir, desempenham um papel fundamental. A montagem cinematográfica e o thriller revelam-se, neste contexto, como modelos de inspiração a partir dos quais é possível pensar a edição e sequenciação das imagens no livro.
[1] Roland Barthes, La cámara lúcida. Nota sobre la fotografía. Barcelona, Paidós, 1990, p. 156.
[2] Eduardo Rodríguez Merchán, Lidia Esteban, y Celia Vega, «La idea del tiempo en fotografía y cine», Fotocinema. Revista científica de cine y fotografía, nº 12, 2016, p. 3.
[3] Susan Sontag, Sobre la fotografía. Cidade do México, Alfaguara, 2006, p. 42.
[4] Joel Smith, «More than One : Sources of Serialism», in More Than One: Photographs in Sequence. Princeton, Princeton University Art Museum, 2008, p. 10.
[5] David Campany, Photography and Cinema. Londres: Reaktion Books Ltd, 2008, p. 62.
[6] Ana María Guasch, Arte y Archivo, 1920–2010. Genealogías, Tipologías y Discontinuidades. Madrid, Akal, 2011, p. 111.
[7] Jean-François Chevrier, La fotografía entre las bellas artes y los medios de comunicación. Barcelona, Gustavo Gili, 2007.
[8] Benjamin H. D. Buchloh, Formalismo e historicidad. Modelos y métodos en el arte del siglo XX. Madrid, Akal, 2004.
[9] Lincoln Kirstein, «Photographs of America: Walker Evans», in American Photographs. Nova Iorque, The Museum of Modern Art, 1938, p. 192–193.
[10] Garry Badger e Martin Parr, The Photobook: A History, vol. 1. Londres, Phaidon, p. 7.
[11] Olivier Lugon, «“Photo–Inflation”. La profusion des images dans la photographie allemande, 1925–1945», in Les Cahiers du musée d’art moderne, nº 49, 1994, p. 101–102.
[12] Julio Cortázar, «Algunos aspectos del cuento», in Cuadernos Hispanoamericanos. Revista mensual de Cultura Hispánica, nº 255, 1971, p. 406.
[13] Clément Chéroux, «Vous appuyez sur le bouton, nous faisons le reste!», in Mutations. Perspectives sur la photographie. Paris, Paris Photo/ Steidl, 2011, p. 246.
[14] Laura Terré, Historia del grupo fotográfico AFAL, 1956–1963. Sevilha, Photovision, 2006, p. 296.
[15] Emily King, Look, «No Words!», in Put About: A Critical Anthology on Independent Publishing, ed. por Maria Fusco e Ian Hunt. Londres, Book Works, 2004, p. 32.
[16] Marta García Sahagún e Celia Vega Pérez, «Dos interpretaciones del (mismo) espacio. El paisaje mítico norteamericano en el cine (Malas Tierras, Badlands, Terrence Malick, 1973) y en el fotolibro (Redheaded Peckerwood, Christian Patterson, 2011)», in Fotocinema. Revista científica de cine y fotografía, nº 16.16, 2018, p. 350–79.
[17] Holly Stuart Hughes, «The Art and Process of Sequencing Photo Books», PDN, 2018. Disponível em: https://www.pdnonline.com/features/photo-books/art-process-sequencing-photo-books/.
[18] Wolfgang Iser, L’appel du texte. L’indétermination comme condition d’effet esthétique de la prose littéraire. Paris, Allia, 2002,
p. 31–32.
[19] Op. Cit., Stuart Hughes.
[20] Jörg Colberg, Understanding Photobooks: The Form and Content of the Photographic Book. Londres/Nova Iorque, Routledge, 2017, p. 37.
[21] Marie-Laure Ryan, «Narration in Various Media», in The Living Handbook of Narratology, ed. por Peter Hühn et al. Hamburgo, Hamburg University Press, 2013. Disponível em: https://www.lhn.uni-hamburg.de/node/53.html.
Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Faculdade de Belas Artes
Universidade do Porto
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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDP/04395/2020